SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 25 de setembro de 2013

LAMPIÃO E A MÃE DE SANTO


Rangel Alves da Costa*


Dizem que certa época o Capitão Virgulino andava tão desconfiado das coisas do destino que mal falava com seus cabras, comia ou bebia. Passava horas amoitado, pensativo, cabisbaixo, com um aperto danado no coração. Maus pressentimentos, augúrios sombrios, sentimentos de derrocada logo adiante.
O destemido, o homem de todas as guerras sertanejas, de repente estava sendo vencido por batalhas internas. Sempre com crucifixo à mão, e religioso como era, rezava de virar noite, se apagava como nunca aos mistérios divinais. E implorava aos céus para que lhe afastasse do peito e do pensamento tanta coisa melindrosa de se pensar e sentir.
Foi Maria, a Bonita, que procurou resolver aquela difícil situação de seu amado. Encontrou seu Capitão em cima da pedra grande ao entardecer, e após fazer um carinho lamentoso disse - também entristecida de doer no coração de quem avistasse - que achava melhor ele marcar um encontro com o padre do Juazeiro, o Padim Ciço. Suas palavras talvez tivessem o dom de acalmar e fortalecer aquele espírito sofredor.
Lampião prontamente acatou a ideia de sua Maria. Até esboçou um leve sorriso, gesto que não expressava desde semanas. No instante seguinte e já estava escrevendo carta a ser enviada com urgência ao milagreiro do Juazeiro. Na missiva, embora curta e objetiva, dizia que não andava com o coração em compasso com sua lide, mais temeroso do que nunca, tendo pensamentos ruins, e por isso mesmo precisava muito ter uma conversa com aquele que certamente faria retornar as forças num homem atormentado.
Quando a missiva chegou às mãos do Padim Ciço, que estava bebericando um cálice de vinho, este sentiu a mão tremular tanto que não pôde evitar que o cristal se espatifasse pelo chão. O milagreiro não gostava de ver vinho derramado a seus pés, sentia como mau presságio, como aviso de acontecimento ruim. E aquela carta do Capitão então piorava ainda mais a situação.
Nervosamente abriu a missiva, leu-a com a avidez dos desesperados, para, enfim, recobrar a calma com outro cálice de antiga safra. Sentiu o aroma da bebida, levou-a aos lábios e depois sorriu, dizendo a si mesmo: Vou ter que revelar ao danado do cangaceiro o que faço às escondidas, sem ninguém jamais duvidar que isso pudesse acontecer. Certamente servirá pra ele evitar o pior na sua caminhada. Faço isso porque sei que ainda vou precisar muito de suas armas, de sua sangrenta valentia.
E em seguida passou a escrever a resposta. E resposta também curta, mas dizendo tudo o que o Capitão precisava fazer, e com urgência. Depois selou a missiva com sinal sagrado e entregou ao mesmo portador. E na carta dizia, entre outras considerações, as seguintes:
“Venerado Lampião, que Deus seja louvado no céu e o grande Capitão aqui na terra. Que suas apreensões e temores desapareçam como os inimigos no fogo de sua arma. Mas afirmo que não tenho poderes para, com um simples encontro de aconselhamento, mudar nada do que pressente como negativo no seu destino. Tenho mais poderes políticos do que divinos, e que isto não chegue aos meus fiéis, e também fanáticos eleitores. Mas aconselho a fazer o que faço quando me sinto apequenado, com sensação de que os inimigos políticos estão fazendo perseguições além das devidas. E nestes momentos o que faço é procurar Mãe Cabocla de Oxolufá, a mãe de santo mais famosa dessa região do Cariri. Basta adentrar no seu terreiro de candomblé que a velha senhora faz descer seus orixás para afastar do seu corpo tudo de ruim que esteja lhe perseguindo. Como diz o ditado cunhado pelo seu bando, é tiro e queda. Abaixo mando endereço e outras ordenações”.
Mesmo um tanto desapontado, pois do Padim Ciço esperava apenas a confirmação do encontro entre os dois, Lampião decidiu que partiria, juntamente com sua Maria e mais dois cabras, em secreta viagem até o local onde a dita mãe de santo atendia no seu terreiro. E disse a si mesmo que não era nada demais se avistar com uma yalorixá e, através dela, os orixás. Quem sabe se naquela manifestação religiosa não estava uma porta para acabar de vez com as tantas apreensões que lhe perseguiam.
Chegando ao local indicado na missiva do padre do Juazeiro, não demorou muito e alcançou o terreiro da Mãe Cabocla de Oxulufá, que na região era conhecida por roça. Contudo, ao se fazer anunciar, o que se viu daí em diante foi uma verdadeira danação. O atendente da porteira, após esbugalhar os olhos pelo nome ouvido, correu desembestado mata adentro. Duas filhas de santo desmaiaram no mesmo instante que souberam de quem se tratava.
Como não havia quem os mandasse entrar, então Lampião e seu pequeno grupo foram cortando passo pelo terreiro. De um lado um barracão e de outro uma casa grande com alpendre. Desta saíram pessoas para saber quem chegava assim de modo tão afoito, sem prévio anúncio e sem permissão de Mãe Cabocla. Porém, antes que estas fizessem qualquer pergunta, uma voz ecoou lá de dentro: É o Capitão Lampião. Abram passagem, deixem entrar.
Mas nem precisava dizer para abrir passagem, para deixá-los entrar, pois o nome do maior dos cangaceiros surtiu um efeito inacreditável. Duas mulheres e um homem pareceram tomados por estranhas manifestações corporais, que não só os faziam revirar os olhos e se contorcer freneticamente como correr ao mesmo tempo, derrubando tudo que encontrassem pela frente. Sumiram no meio do mundo que a poeira levantava em profusão.
Ouvindo a barulheira, em seguida foi a vez da mãe de santo aparecer diante do Capitão. Portentosa, paramentada segundo seu culto, mostrava imponência e uma misteriosa beleza. Vamos ali pro outro lado, pro barracão. Foi o que disse. Deixando Maria e os outros cabras na casa, apenas os dois seguiram para a moradia dos orixás. Era ali no barracão que ela recebia convidados importantes, como tantas vezes aconteceu com o padre do Juazeiro.
Contudo, assim que colocou os pés no ambiente, a velha yalorixá estremeceu dos pés à cabeça, franziu o cenho, parecia fora de si. Curvou-se de lado a outro, recobrou as forças e disse ao Capitão tomado de espanto: Algo muito estranho está acontecendo com os orixás. Querem me jogar pra fora do barracão a todo custo. E tudo por causa de você, Lampião. Só resta agora implorar para que algum se apresente e diga como resolver sua situação. Mas o que é que tanto aflige o Capitão?
Quando o cangaceiro contou dos pressentimentos ruins e perguntou se tudo aquilo era sinal de funesto acontecimento, a mãe de santo foi logo dizendo: O Capitão é homem que não deve temer a nada. É só o vento mau que traz pensamento ruim. Sei bem do quanto é capaz de vencer a tudo e a todos. É verdade é ou não, Lampião? E ele falou na bucha: Comigo é na espoleta, no chumbo, na bala, na faca e no punhal, e quem se mostrar intriguento demais ainda sangro todinho vivo.
Nem terminou tais palavras e se ouviu um barulho tão grande que quase o barracão desaba, e em seguida um som de correria e de mata se abrindo em alvoroço. Valei-me Yxulá Boncoxá, valei-me Infó Gulamê, valei-me que meus orixás correram com medo do homem. Foi o que disse a espantada Yalorixá, levando as mãos à cabeça.
Mas em seguida se voltou para Lampião e afirmou: Se até os orixás temem o Capitão, se metem no oco do mundo pela sua presença, então provado tá que nada há de afligir sua caminhada. Seu problema tá resolvido, em nome dos orixás!


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

Um comentário:

gleiciane ramalho disse...

Essa história é baseada em fato reais?