Rangel Alves da
Costa*
Dizem que
certa época o Capitão Virgulino andava tão desconfiado das coisas do destino
que mal falava com seus cabras, comia ou bebia. Passava horas amoitado,
pensativo, cabisbaixo, com um aperto danado no coração. Maus pressentimentos,
augúrios sombrios, sentimentos de derrocada logo adiante.
O
destemido, o homem de todas as guerras sertanejas, de repente estava sendo
vencido por batalhas internas. Sempre com crucifixo à mão, e religioso como
era, rezava de virar noite, se apagava como nunca aos mistérios divinais. E
implorava aos céus para que lhe afastasse do peito e do pensamento tanta coisa
melindrosa de se pensar e sentir.
Foi Maria,
a Bonita, que procurou resolver aquela difícil situação de seu amado. Encontrou
seu Capitão em cima da pedra grande ao entardecer, e após fazer um carinho
lamentoso disse - também entristecida de doer no coração de quem avistasse -
que achava melhor ele marcar um encontro com o padre do Juazeiro, o Padim Ciço.
Suas palavras talvez tivessem o dom de acalmar e fortalecer aquele espírito
sofredor.
Lampião
prontamente acatou a ideia de sua Maria. Até esboçou um leve sorriso, gesto que
não expressava desde semanas. No instante seguinte e já estava escrevendo carta
a ser enviada com urgência ao milagreiro do Juazeiro. Na missiva, embora curta
e objetiva, dizia que não andava com o coração em compasso com sua lide, mais
temeroso do que nunca, tendo pensamentos ruins, e por isso mesmo precisava
muito ter uma conversa com aquele que certamente faria retornar as forças num
homem atormentado.
Quando a
missiva chegou às mãos do Padim Ciço, que estava bebericando um cálice de
vinho, este sentiu a mão tremular tanto que não pôde evitar que o cristal se
espatifasse pelo chão. O milagreiro não gostava de ver vinho derramado a seus
pés, sentia como mau presságio, como aviso de acontecimento ruim. E aquela
carta do Capitão então piorava ainda mais a situação.
Nervosamente
abriu a missiva, leu-a com a avidez dos desesperados, para, enfim, recobrar a
calma com outro cálice de antiga safra. Sentiu o aroma da bebida, levou-a aos
lábios e depois sorriu, dizendo a si mesmo: Vou ter que revelar ao danado do
cangaceiro o que faço às escondidas, sem ninguém jamais duvidar que isso
pudesse acontecer. Certamente servirá pra ele evitar o pior na sua caminhada.
Faço isso porque sei que ainda vou precisar muito de suas armas, de sua
sangrenta valentia.
E em
seguida passou a escrever a resposta. E resposta também curta, mas dizendo tudo
o que o Capitão precisava fazer, e com urgência. Depois selou a missiva com
sinal sagrado e entregou ao mesmo portador. E na carta dizia, entre outras
considerações, as seguintes:
“Venerado
Lampião, que Deus seja louvado no céu e o grande Capitão aqui na terra. Que
suas apreensões e temores desapareçam como os inimigos no fogo de sua arma. Mas
afirmo que não tenho poderes para, com um simples encontro de aconselhamento,
mudar nada do que pressente como negativo no seu destino. Tenho mais poderes
políticos do que divinos, e que isto não chegue aos meus fiéis, e também
fanáticos eleitores. Mas aconselho a fazer o que faço quando me sinto
apequenado, com sensação de que os inimigos políticos estão fazendo
perseguições além das devidas. E nestes momentos o que faço é procurar Mãe Cabocla
de Oxolufá, a mãe de santo mais famosa dessa região do Cariri. Basta adentrar
no seu terreiro de candomblé que a velha senhora faz descer seus orixás para
afastar do seu corpo tudo de ruim que esteja lhe perseguindo. Como diz o ditado
cunhado pelo seu bando, é tiro e queda. Abaixo mando endereço e outras
ordenações”.
Mesmo um
tanto desapontado, pois do Padim Ciço esperava apenas a confirmação do encontro
entre os dois, Lampião decidiu que partiria, juntamente com sua Maria e mais
dois cabras, em secreta viagem até o local onde a dita mãe de santo atendia no
seu terreiro. E disse a si mesmo que não era nada demais se avistar com uma
yalorixá e, através dela, os orixás. Quem sabe se naquela manifestação
religiosa não estava uma porta para acabar de vez com as tantas apreensões que
lhe perseguiam.
Chegando
ao local indicado na missiva do padre do Juazeiro, não demorou muito e alcançou
o terreiro da Mãe Cabocla de Oxulufá, que na região era conhecida por roça.
Contudo, ao se fazer anunciar, o que se viu daí em diante foi uma verdadeira
danação. O atendente da porteira, após esbugalhar os olhos pelo nome ouvido,
correu desembestado mata adentro. Duas filhas de santo desmaiaram no mesmo
instante que souberam de quem se tratava.
Como não
havia quem os mandasse entrar, então Lampião e seu pequeno grupo foram cortando
passo pelo terreiro. De um lado um barracão e de outro uma casa grande com
alpendre. Desta saíram pessoas para saber quem chegava assim de modo tão
afoito, sem prévio anúncio e sem permissão de Mãe Cabocla. Porém, antes que
estas fizessem qualquer pergunta, uma voz ecoou lá de dentro: É o Capitão
Lampião. Abram passagem, deixem entrar.
Mas nem
precisava dizer para abrir passagem, para deixá-los entrar, pois o nome do
maior dos cangaceiros surtiu um efeito inacreditável. Duas mulheres e um homem
pareceram tomados por estranhas manifestações corporais, que não só os faziam
revirar os olhos e se contorcer freneticamente como correr ao mesmo tempo,
derrubando tudo que encontrassem pela frente. Sumiram no meio do mundo que a
poeira levantava em profusão.
Ouvindo a
barulheira, em seguida foi a vez da mãe de santo aparecer diante do Capitão. Portentosa,
paramentada segundo seu culto, mostrava imponência e uma misteriosa beleza. Vamos
ali pro outro lado, pro barracão. Foi o que disse. Deixando Maria e os outros
cabras na casa, apenas os dois seguiram para a moradia dos orixás. Era ali no
barracão que ela recebia convidados importantes, como tantas vezes aconteceu
com o padre do Juazeiro.
Contudo,
assim que colocou os pés no ambiente, a velha yalorixá estremeceu dos pés à
cabeça, franziu o cenho, parecia fora de si. Curvou-se de lado a outro,
recobrou as forças e disse ao Capitão tomado de espanto: Algo muito estranho
está acontecendo com os orixás. Querem me jogar pra fora do barracão a todo
custo. E tudo por causa de você, Lampião. Só resta agora implorar para que
algum se apresente e diga como resolver sua situação. Mas o que é que tanto
aflige o Capitão?
Quando o
cangaceiro contou dos pressentimentos ruins e perguntou se tudo aquilo era
sinal de funesto acontecimento, a mãe de santo foi logo dizendo: O Capitão é
homem que não deve temer a nada. É só o vento mau que traz pensamento ruim. Sei
bem do quanto é capaz de vencer a tudo e a todos. É verdade é ou não, Lampião?
E ele falou na bucha: Comigo é na espoleta, no chumbo, na bala, na faca e no
punhal, e quem se mostrar intriguento demais ainda sangro todinho vivo.
Nem
terminou tais palavras e se ouviu um barulho tão grande que quase o barracão
desaba, e em seguida um som de correria e de mata se abrindo em alvoroço.
Valei-me Yxulá Boncoxá, valei-me Infó Gulamê, valei-me que meus orixás correram
com medo do homem. Foi o que disse a espantada Yalorixá, levando as mãos à
cabeça.
Mas em
seguida se voltou para Lampião e afirmou: Se até os orixás temem o Capitão, se
metem no oco do mundo pela sua presença, então provado tá que nada há de
afligir sua caminhada. Seu problema tá resolvido, em nome dos orixás!
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Essa história é baseada em fato reais?
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