SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 31 de outubro de 2010

CORREIO DA ILHA (Crônica)

CORREIO DA ILHA

Rangel Alves da Costa*


Nasci, me crio e certamente vou morrer nessa ilha. Ela fica ao norte de qualquer lugar e é tão minúscula e tão grande que cabe num passo e não cabe numa vida. Faz fronteira com o silêncio das águas, com os mistérios do alto e com qualquer lugar do oriente. Dizem que no outro lado da terra mais longe debaixo dos nossos pés o oriente está de cabeça pra baixo. Tanto faz.
Alguém que chegou na ilha num tempo muito distante, bem antes de mim, deixou escrito no tronco da única árvore existente algumas palavras que podem resumir tudo: Eis a ilha, onde piso e não posso ir adiante porque não sou mundo, também sou ilha.
E como não posso andar, correr, caminhar, viajo com o olhar, vivo da imaginação e tenho o que quero na mão que alcança onde quer chegar. E só sei que tudo existe porque não me falta o vento, que é o correio da ilha.
O correio da ilha sopra incessantemente, de norte a sul, de sul a norte, sem tempo para descansar e sem deixar de me informar sobre tudo. Se penso que devo esquecer ou que estou esquecido, eis que chega o carteiro certeiro e me joga na face, na memória e no olhar imagens, notícias e situações que confirmam que a ilha é um lugar cercado pelo presente e passado por todos os lados.
É um vento constante e moderado enquanto trabalha para me trazer lembranças e recordações; outras vezes sopra diferente, mais forte e ocasional, quando pressinto que tenho de conhecer ou simplesmente reviver coisas doloridas e que fazem sofrer. Mas não é somente assim, pois existe também instantes de brisa, quando sei que tudo que vivo naquele instante me é trazido pelos sonhos, quando é possível adormecer e sonhar.
Tenho medo que mesmo o vento que sopra mais forte cisme em se transformar em ventania, vendaval e, por motivos que não devem faltar, chegue destruindo e dilacerando tudo e, ao invés de espalhar e levar tudo pelo ar, simplesmente transforme a ilha e seu habitante numa agonia maior do que já existe.
Tenho esse temor porque muitas vezes olho o horizonte e está tudo diferente, mais escuro e amedrontador. Mesmo que o céu e redor estejam na mais pura brandura e harmonia, me sinto assim temeroso e pronto. Significa que as tempestades não se formam lá fora, ilha adiante, além da minha ilha, mas ao meu redor, sobre e dentro de mim. O pior é que sei a exata medida da destruição. A lembrança, a saudade no instante, tudo é a medida da destruição.
Queria usar o correio da minha ilha também para enviar notícias minhas, dizer como estou ou como já não sou. Mas todas as vezes que chamo o carteiro ele me diz que está ocupado separando minhas encomendas, que não tem tempo para levar nada, somente para me entregar o que enviaram. E quando as folhas da árvore que me serve como moradia começam a soprar já sei que ele vem chegando, e vai entrando sem bater na porta e me joga calhamaços de tudo que eu queria esquecer.
A porta fechando e eu saindo; o adeus não correspondido; a raiva, o ódio, a briga, a desculpa não aceita; o anel jogado no esgoto; as cartas e os retratos rasgados e destruídos; as manhãs passeando pelo jardim, os pássaros cantando, a flor colhida e entregue com um beijo à outra flor; o por do sol nos fotografando; gaivotas em revoada ao nosso redor; e como era belo ficar olhando os barquinhos singrando as águas e a caravela solitária aportando diante dos nossos olhos entristecidos.
Tudo isso o vento me traz, tudo isso ele me joga sem piedade. E depois faz a curva ali mesmo e retorna para buscar mais lembranças, tristezas, saudades...



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Toninho disse...

Ficou perfeito este canto ao vento carteiro,que faz lembranças, que refresca a mente nos pensamentos e faz companhia constante no dia, com seu belo canto antes de se perder na curva.Bem interessante sua inspiração.Um abraço Rangel e boa semana.