Rangel Alves da
Costa*
Lampião
não era brincadeira não, assim começava um dos causos acerca do capitão
cangaceiro entre tantos que já ouvi nas tardes de proseados sertanejos. Debaixo
do pé de pau secular, amendoeira que derramava suas folhas largas pelo chão de
Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, velhos amigos se reuniam para falar
da estiagem medonha, da coivara que quase incendeia todo o sertão, do coronel
que acabou sendo chibatado pelo humilde escravizado. Mas quando o assunto era o
Capitão Lampião o proseado chegava a entrar na boca da noite.
Zé Titonho
era o mais sabichão, ou o mais loroteiro, como dizia o outro. E de sua
matutação sempre surgia algum causo de amansar burro brabo. E foi dele que ouvi
a história de como Lampião botou o rabudo pra correr e depois rumou em direção
ao céu. Noutras palavras, quando Lampião renegou o caldeirão fervente e
preferiu se acoitar prazerosamente às sombras do paraíso celestial. E uma
história pra lá da gota serena de boa.
Segundo Zé
Titonho, antes mesmo de morrer o Capitão Lampião já estava com destino certo.
Por mais que se mostrasse devoto fervoroso de santos e anjos, por mais que sua
fé fosse demonstrada a cada pausa na luta, por mais que vivesse levando patuás,
rosários e rezas escritas em papel, ainda assim sua destinação já estava
decidida: ia para os quintos. As ações violentas e as brutalidades praticadas
pelos seus comandados, e até por mão própria, suplantavam em muito os limites
do perdão na hora de bater as botas e procurar avistar uma fresta de luz lá em
riba.
O Capitão
Virgulino, temeroso como era das coisas sagradas, se afligia todo ao imaginar
acerca de seu destino após se despedir dessa vida. Ora, sair de um fogo eterno
e entrar em outro não era boa coisa não. Sair de um suplício a cada passo e
amargar a aflição eterna não era coisa pra ninguém desejar. Por isso mesmo que
se aperreava todo ao se imaginar sendo jogado no coito do sofrimento ao invés
do repouso dos justos. Mesmo de fé abnegada, sabia que seus pecados já haviam
chegado ao conhecimento do rabudo. E certamente este o esperava para o devido
trato.
A não ser
a Maria Bonita, a ninguém mais confessava suas preocupações. E também nunca
espalhou o que planejava acaso não tivesse mesmo jeito. Ou seja, o que
imaginava fazer quando fosse jogado perante os portais do fogo e do contínuo
sofrimento. Mas tinha uma estratégia pronta para quando se deparasse com tal
situação. Jurava a si mesmo se o rabudo não iria se arrepender em querer jogar
no tacho ardente um homem como ele, católico, religioso fiel, honrado e filho
de um pai maior.
E não deu
outra. Quando o Capitão bateu as botas lá pelas bandas do Angico, todo o mundo
da escuridão e do suplício entrou em festa. O coisa-ruim mandou abrir uma
cachaça para comemorar, as fogueiras foram atiçadas, os caldeirões ficaram mais
ferventes e as veredas do sofrimento devidamente renovadas. Tudo para receber o
Capitão Lampião. E não demorou muito para que Caronte anunciasse a chegada do
homem.
Matreiro
como era, estrategista sem igual, Lampião fez toda a travessia do rio dos
condenados sem demonstrar qualquer preocupação. Pelo contrário, quase fazia o
feioso barqueiro perder as estribeiras e desistir de levá-lo depois de tanto
fazer perguntas. Perguntava como era o chifrudo, se ele era fedorento mesmo, se
por lá havia buchada, carne de bode, feijão de corda e farinha seca com
rapadura.
Assim que
foi ordenado a descer, o Capitão logo avistou o coisa-feia à sua espera. Soltava
tanto fogo pelas ventas que mais parecia um vulcão irrompendo. Acenou,
cumprimentou sorrindo e até perguntou como o amigo suportava viver num lugar
tão quente como aquele. Antes de entrar pediu licença para rezar e depois se
ajoelhou. Lançou mão de um rosário, tirou uma reza do embornal, depois entoou
em voz alta, quase gritando: Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o
vosso nome... Não pôde prosseguir ante o estrondo que ouviu: Pare com isso seu
desgraçado, aqui é mundo da escuridão e não o que está pensando. Era o
coisa-ruim em tempo de endoidar.
Mas o pior
veio depois. Lampião puxou um punhal e saiu riscando cruzes por todo lugar.
Tirou uma arma da cintura e mirou no meio do rio. Caronte desabou na água
fervente pra não mais subir. E ao mirar nas ventas do coisa-feia, este logo
bradou: tanto faz um foguinho a mais ou a menos. Mas não esperava a saraivada
de balas que recebeu. Espantado com a valentia do homem, recuou para chamar
ajuda do cachorro de quatro cabeças. Mas quando retornou o canto estava mais
limpo.
Vendo a
coragem de Lampião, lá do alto foi-lhe concedido perdão imediato. E anjos
cuidaram de levá-lo à presença do Senhor. Salvo estava, mas não sem antes ouvir
umas poucas e boas. E foi assim que Zé Titonho terminou seu proseado.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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