SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 12 de junho de 2010

DESABAFO (Crônica)

DESABAFO

Rangel Alves da Costa*


Estava alegre passeando pelo parque e ao sentar num daqueles bancos de madeira antiga percebeu que alguém havia esquecido um pequeno livro ali ao lado. Olhou várias vezes ao redor, esperou uns dez minutos e não se conteve: pegou o livrinho e ao folheá-lo percebeu que estava escrito em inglês, mas uma coisa lhe chamou a atenção. Uma folha de papel escrita recentemente, pois datada do dia anterior, caiu bem no seu colo. Não teve dúvidas, segurou a folha e começou a ler. E o papel, mais parecida com uma página arrancada de um diário, dizia:
"Ando meio triste. Na verdade estou muito triste. Para ser bem sincero, não sei por que esse dia amanheceu e levantei com ele. Se soubesse que ia ser assim nem tinha deitado ontem, nem tinha ficado alegre ontem, não tinha achado que existia a felicidade.
Acordar e ter diante da vida essa realidade, melhor seria negar a própria existência. O problema é que sei que problemas existem, mas não sei de onde vieram nem onde estão. E existem porque é impossível que do nada tudo se transforme em angústia, tristeza e vontade de dar uma porrada na palavra que não sabe expressar bem o que sinto.
Penso sinceramente que merecia manhãs, tardes e noites, mesmo que fossem sofridas; sair, caminhar e viver, mesmo que fossem atitudes dolorosas; falar, ouvir e pensar, mesmo que não existisse nada para falar nem ouvir. Quando penso que tudo poderia ser diferente, me chega do nada o nada. Isso mesmo, o nada, mas um nada que apaga tudo que deveria acontecer e impõe no pensamento uma terrível sensação de que não estar existindo seria bem melhor.
Tento não errar demais, procuro acertar onde posso; vou muito além dos dez mandamentos no que sou obediente e temente aos castigos divinos; se cometo pecados, peco em face do mundo e não perante o que tenho fé, mas sou pecador contumaz contra aqueles que transgridem essa minha fé; não tenho religião nem vivo com a bíblia embaixo do braço, mas moro dentro da bíblia, e nesta há uma igreja onde reverencio o meu Deus; respeito os deuses pagãos porque tenho o meu próprio deus e sinto que todos têm o direito de adorarem os deuses que quiserem, das florestas ou dos mistérios; não gosto dos deuses da tristeza e do sofrimento, mas sei que eles existem. Hoje, mais que nunca sei que eles existem e não ajudam em nada, a não ser tornar um dia que deveria ser normal num dia daqueles.
Pensando bem, muitas vezes não adianta querer ser sério demais, bonzinho demais, correto demais, incorruptível demais. Se um santo desses que moram lá em cima descesse aqui na terra levaria porrada, seria chamado disso e daquilo, seria aviltado e achincalhado, e só porque é santo demais. Sei que mais cedo ou mais tarde os que vivem no erro aqui na terra pagarão com ferro o erro da água, ou com a agonia eterna o erro da palavra, mas às vezes dá até mesmo vontade de fazer besteiras, de errar, de infringir os preceitos da boa conduta e dos bons costumes.
Ora, eles erram, pecam, pintam e bordam, fazem gato e sapato, e o quem os encontrar só os verão sorrindo, cheios dos prazeres mundanos e outros prazeres adquiridos no vil metal amontoado em elástico. Dá vontade de ser como eles porque, por mais que se faça o correto e procure viver corretamente, a vida de repente dá suas patadas, como no dia de hoje. Tem tanta gente que nunca fez o bem nem nada de bom na vida que vive por aí com ares de felicidade, por que o mundo quer desabar logo em cima de quem só quer viver em paz? Já que inocente sou penalizado com a dor, então que a próxima sentença diga que realmente transgredi, que pratiquei qualquer coisa de errado, pois vou errar.
Vou errar daqui por diante para justificar dias como este, momentos como este, quando o mundo desaba sem eu ter feito nada. E vou errar a partir de agora, desse instante, quando deixar esse escrito num banco de praça para que encontrem e leiam, e saibam que saí por aí dizendo que o sol é feio, o dia é feio, o jardim é feio, as pessoas são feias, tudo é feio. Isto é pecado porque mentir é pecado. Mas talvez seja feliz pecando assim. O que não pode acontecer mais é eu ser bonzinho demais e aparecerem dias como este".




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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