SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 4 de junho de 2010

UMA PORTA ABERTA (Crônica)

UMA PORTA ABERTA

Rangel Alves da Costa*


"Oi de casa, tem alguém aí?". Se tiver abra a porta e me deixe entrar. Quero descansar dessa viagem longa, desse caminho de pedras, dessa vida sem portas abertas para a felicidade.
A casa pode ser muito simples, uma tapera ou um casebre nos mais distantes rincões, ou moradia suntuosa, cheia de arquitetura e garagem para muitos carros, ou ainda mansões, palácios e castelos, não importa a grandeza ou imponência da residência, mas sempre haverá uma porta, um acesso principal de entrada e de saída, que testemunha no seu vão não só o percurso, o transitar de pessoas e animais, mas também um surgir dali muitas idas sem volta, muitas chegadas sem retorno, muitas lembranças, recordações, saudades, angústias...
Colocar o pé na porta para entrar ou sair é momento muitas vezes difícil, dolorido demais pelas circunstâncias, ato que só se leva adiante porque o vão da porta tem que ser transposto. Como uma fronteira que limita uma situação, transpor a porta pode significar o abraço, o adeus, o cansaço, a pressa, a vontade de partir, a pressa de chegar, o retorno, a partida, a raiva, o ódio, a alegria, o beijo, o esquecimento de algo importante, a vontade de levar quem fica. Quantas lágrimas não se derramam quando a porta se fecha ou se abre, quando a mão começa a acenar, quando se avista alguém abrindo a porteira?
A porta estava aberta mas foi fechada há instantes atrás. Maria disse que ia ali mas voltava logo; João foi trabalhar; Lúcia não volta mais. Se a porta estava aberta e foi fechada é sinal de que a vida por ali está momentaneamente inexistente. Até que poderia ser assim, mas muitas vezes vidas estão trancadas lá dentro preferindo se fechar para o mundo, não querendo ver nem receber ninguém. Doralice está chorando bem atrás da porta e ninguém vê; Astério está prostrado na cama, querendo ver a luz do sol através da porta que está fechada; o pai saiu e trancou a porta pra Joaninha não sair pra namorar, mas esqueceu que na casa tem duas janelas. Antonio morava sozinho, estava dentro de casa e há três dias que a porta não era aberta. Será que Antonio morreu e ninguém sabe?
De manhãzinha Maria abriu a porta para o sol entrar e afastar as mazelas, as coisas ruins que gostam de fazer moradia na escuridão; Jorgina abre a porta, coloca a cadeira do lado de fora e fica sentada fazendo crochê até que o feijão pegue no fundo da panela e ela saia correndo porta adentro, derrubando as coisas, caindo; todo dia é assim. O marido já prometeu que se continuar desse jeito vai colocar ela na porta da rua. Antero não fecha a porta enquanto os filhos não chegarem. Cosma só vive com a porta da frente fechada, mas a dos fundos está sempre aberta pra quando o amante chegar. Dizem as más línguas que ela é uma pessoa de portas abertas para qualquer um.
Às vezes dá dó só de ver. A seca vai matando tudo e Belarmino temendo pela vida dos seus, tranca a porta do casebre e não sabe se algum dia poderá voltar ali. Dona Guiomar ainda hoje se lembra, trinta anos depois, quando o seu filho saiu por aquela porta pra nunca mais voltar. Os menininhos choram abraçados à mãe quando o pai vai acenando pela estrada em busca de um emprego no sul. Muitas portas se abrem sozinhas pelos sertões, e em todas elas nem os fantasmas da miséria querem entrar. Como Morena não tinha porta colocou uma velha cortina; quando o vento bate abre a porta e mostra Morena chorando com saudade de não sei quem.
Alguém saiu apressado e esqueceu a chave na porta; outro chegou e teve que voltar porque não trouxe a chave. Júlio chegou, chamou e chamou e ninguém abriu a porta; sentou no chão esperando e dormiu. Dizem que a porta de quem não tem casa é o começo da rua. E é por isso que meio mundo de crianças abandonadas dorme à noite nas suas casas, de portas sempre abertas.




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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