EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 5

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 5

Rangel Alves da Costa*


Embaixo do sol sertanejo, no feitio do lugar que cheira a flor mesmo sem ter rosa nem jardim, mulher bonita é planta que mata a sede do desejo e a fome do amor que tanto se quer ter. E mulher bonita era Lúcia, fruto mais viçoso da terra agradecida, mulher que espalhava beleza pelos horizontes, paisagens e olhares sempre encantados.
Essa mesma Lúcia que era solteira igual a terra virgem pronta pra ser plantada, acarinhada, amada com cuidado e gosto; igual a lua cheia desencantada na escuridão. Mulher verso e prosa de palavras escondidas, cordel escrito na rude poesia que se torna linda porque fala em lindeza, morenice sertaneja, suor de jambo macio, entardecer satisfeito em ter sem ter sorriso e olhar.
Quem acabou dando sorte foi Fabiano. Esse filho de Dona Lia, rapaz estudado e educado, que passando férias no lugar encontrou um dia com a menina Lúcia e se apaixonou como a semente se apaixona pelo pingo de chuva. Solteiro, com os seus vinte e poucos anos, trabalhava numa grande empresa da capital, e mesmo moço já era um dos diretores. E foi amor à primeira vista, desses que ninguém pode explicar como acontece e acaba tendo as consequencias mais agradáveis ao coração.
Ela ia pra outro lugar ou ia pelo outro lado da rua, ninguém sabe dizer. Ninguém sabe ao certo, mas a verdade é que o anjo modificou os caminhos, inventou novos planos, mudou pensamentos, e de repente os dois quase se batem numa ruazinha estreita. O anjo viu quando ela virou a esquina e de repente, num passo distraído, sem querer tocou no corpo do rapaz, que andava por ali talvez enviado por outro anjo. Ela pediu desculpas e seguiu; ele também. Não, ele ia seguir mas ficou parado olhando aquela mulher encantadora que surgiu do nada para despertar um verdadeiro fascínio em todo o seu ser.
O anjo ficou feliz porque sua intercessão estava confirmando o destino. Sabia que não duraria muito para que ela deixasse o lar e até se mudasse de lugar, fosse morar com o amado na cidade grande. E mais uma vez o destino se cumpriria, porque somente assim Lucas passaria a morar sozinho e iniciar aquilo que lhe cumpriria fazer na vida, por caminhos traçados para ele de maneira diferente do que normalmente previsto para as demais pessoas. Não que fosse um viver diferente no mundo de iguais, mas que seria um jeito muito próprio de se caminhar pela vida, vencendo os muitos obstáculos e buscando construir aquilo que para a maioria das pessoas seria verdadeiramente impossível.
Quando Lúcia falou ao irmão sobre Fabiano, do acaso que havia se transformado em namoro, ele segurou nas mãos da irmã e falou:
- Você sempre me traz felicidades, minha irmã, e mesmo com ciúmes deste tal de Fabiano, fico feliz porque você demonstra estar radiante. Nada melhor do que o amor para nos trazer felicidade. Você merece tudo de bom, ter muitas alegrias na vida, pois uma moça como você não nasceu para viver entregue às mesmices da vida, somente trabalhando e sofrendo todas as vezes que coloca os pés nesta casa e relembra dos nossos pais. O amor deles devemos guardar sempre dentro da gente, pois isto será eterno, mas não podemos fugir do amor-paixão que nos é próprio nesta idade. Se chegou o seu momento de amar esse rapaz, que assim seja, precisando somente que você tenha certeza do que realmente quer, que se assegure de quem realmente se trata e quais os reais propósitos para com você. No demais resta-nos orar para que tudo dê certo, para que o amor que você diz ter encontrado jamais se transforme em ilusão. Que seja muito feliz, minha irmã.
Passaram-se somente mais duas estações, e no iniciar da terceira, quando as folhas já começavam a amarelar para cair e nascer novamente nesse ciclo conhecido por todos, Lúcia casou com Fabiano. Assim mesmo rápido, como se o anjo tivesse pressa para concretizar de vez essa união.
No dia do casamento, logo no primeiro clarear da manhã, Lucas saiu pelos arredores, pelas matarias rasteiras, em busca das flores que pudesse encontrar para fazer um buquê de pétalas do campo para presentear sua irmã. Encontrou flores miúdas, sublimes, e se pôs a juntar galhos de lírios, violetas, açucenas, pétalas vermelhas, amarelas, azuis, de todas as cores; depois juntou cuidadosamente galho por galho, enrolou-os com um cipó e ficou a coisa mais linda do mundo. Depois, com o buquê arrumado e perfumado, ele o ergueu com as duas mãos e pronunciou em voz alta uma exortação bíblica, através do Salmo 46, à felicidade de sua irmã e do seu amado:

"Deus é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem presente na angústia.
Pelo que não temeremos, ainda que a terra se mude, e ainda que os montes se projetem para o meio dos mares;
ainda que as águas rujam e espumem, ainda que os montes se abalem pela sua braveza.
Há um rio cujas correntes alegram a cidade de Deus, o lugar santo das moradas do Altíssimo.
Deus está no meio dela; não será abalada; Deus a ajudará desde o raiar da alva.
Bramam nações, reinos se abalam; ele levanta a sua voz, e a terra se derrete.
O Senhor dos exércitos está conosco; o Deus de Jacó é o nosso refúgio.
Vinde contemplai as obras do Senhor, as desolações que tem feito na terra.
Ele faz cessar as guerras até os confins da terra; quebra o arco e corta a lança; queima os carros no fogo.
Aquietai-vos, e sabei que eu sou Deus; sou exaltado entre as nações, sou exaltado na terra.
O Senhor dos exércitos está conosco; o Deus de Jacó é o nosso refúgio".

Ao retornar para casa, acordou a irmã com um beijo, entregou-lhe as flores e disse: "Boa sorte no seu novo caminho". Ela abraçou-o chorando e depois falou: "Fico pensando como será sua vida aqui, sem ter ninguém ao seu lado, nessa solidão toda. Gostaria tanto de levar você comigo...". Ao que ele completou: "Não se preocupe, minha irmã, pois será na solidão que cumprirei meu destino e encontrarei minha felicidade".
O anjo contemplava tudo isso chorando. Anjos também choram quando os fundamentos das lágrimas para as lágrimas são verdadeiros.


continua...




Advogado e poeta
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