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terça-feira, 15 de junho de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 16

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 16

Rangel Alves da Costa*


- Vocês lembram quando saímos da sala de aula e fomos estudar a natureza de perto, no meio do mato mesmo e pelos campos, observando animais, riachos, plantas e tudo nas paisagens, lembram? Pois bem, a direção dessa escola talvez não tenha gostado, pois pensa que ensinar é somente repassar as ultrapassadas lições em sala de aula, sem dar oportunidade de que vocês pudessem ver diante dos próprios olhos aquilo que deveriam aprender. Vocês lembram quando convidei aquelas pessoas para virem até aqui e falar sobre drogas, poluição, ecologia e cuidados básicos com a saúde, lembram? Recordo bem que vocês pediram para chamar outras pessoas e até falaram sobre o que gostariam de ouvir. Pois bem, a direção da escola achou que não deveríamos ter feito isso, que basta falar um pouquinho sobre coisas tão importantes e pronto. Eles pensam que vocês ficam informados o suficiente com qualquer coisa que se diga rapidamente, em cinco minutos. Então, talvez tenha sido por isso e por outras coisas que acham melhor que eu saia dessa escola, que eu deixe de ensinar vocês, estão entendendo? - Procurava dar explicações um Lucas visivelmente emocionado, com a voz quase que tremulando diante dos seus alunos.
- Professor, o senhor disse que podiam existir também outras coisas para fazerem isso como o senhor, não foi mesmo, e quais seriam essas coisas? – Perguntou um aluno, adiantando-se a outros que queriam insistentemente falar.
Lucas pensou duas, três vezes antes de responder. Não era sua pretensão incutir qualquer tipo de revolta nos alunos, principalmente por serem crianças e adolescentes que ainda não tinham qualquer discernimento mais profundo sobre questões de gestão escolar e de uma educação pautada na manutenção da ignorância dos alunos acerca de problemas essenciais da vida. Mesmo assim resolveu falar, num contexto compreensivo:
- Vou procurar ser bem claro para ver se entendem bem. É que propus à direção da escola convidar os pais de todos vocês para se tornarem mais participantes da vida escolar, vindo aqui discutir os problemas não só relacionados a vocês, como as questões de aprendizagem e indisciplina, mas também para relatarem e discutirem problemas que envolvem a comunidade onde vocês vivem, como as questões da violência, das drogas, do lixo que se espalha cada vez mais, da cobrança aos órgãos públicos do atendimento às necessidades básicas da população, principalmente no que se refere à ampliação do número de médicos nos postos de saúde e a oferta de medicamentos gratuitos. Propus ainda que seus pais fossem convidados a opinarem sobre a escola como se esta fosse uma casa onde cada um deve cuidar da melhor maneira possível, dizendo sobre o que estavam achando certo ou errado, quais as mudanças que poderiam ser feitas, onde cada um poderia ajudar para a melhoria da escola. Propus ainda que os seus pais fossem convidados a participar de discussões sobre a melhor forma de avaliação dos alunos, já que sempre fui contra essa ideia de que aluno que tira nove ou dez é bom, o que tira cinco ou seis é mais ou menos e o que tira de quatro pra baixo é péssimo aluno. Sempre disse que não se mede capacidade de aluno, mas avalia-se, sim, as suas habilidades ao longo do ano, e isto através das participações e das discussões sobre os temas abordados em sala de aula. Assim, propus que tudo isso fosse discutido também com os seus pais, ou seja, entre a direção da escola, os professores, vocês alunos, os seus pais e demais interessados. Tudo o que propus, contudo, sempre foi visto com cara feia pela direção da escola. E a coisa talvez tenha se complicado ainda mais quando afirmei na semana passada que eu levaria constantemente todos vocês até a igreja, para que discutíssemos dentro do próprio templo questões referente à religião. Não sei bem em que ponto feri mais a direção, enraiveci a diretoria, mas a verdade é que sabia que não aceitariam de graça o que eu estava pensando em fazer para melhorar a educação de vocês, e o troco logo viria, como de fato veio hoje com esse bilhete...
- Mas se a gente não aceitar que o senhor saia professor? – Indagou um pequenino, quase pulando e gritando no meio dos demais. E Lucas respondeu, quase com lágrimas nos olhos.
- Já saí meus filhos, não adianta. Conheço bem essa gente ignorante e descompromissada com a educação e com o futuro de vocês. Já saí e agora ainda mais porque eu mesmo quero sair – E os alunos ficaram sem entender nada, cochichando entre si -. E por que quero sair? Porque somente assim vou ter a liberdade de levar adiante um plano que já tinha há muito tempo, que é ensinar a crianças, adolescentes, adultos e velhos, a quem quer que queira aprender de um modo diferente, de um modo onde cada um é o seu próprio professor... – Por mais quis quisesse evitar, uma leve lágrima caiu pelo canto do olho. Por dentro estava chorando muito mais.
Logicamente que os alunos se acercaram de Lucas para saber detalhes sobre o que havia dito. Este disse apenas que os procuraria depois, mas eles poderiam a qualquer momento ir até sua casa para o que precisassem. Despediu-se abraçando cada um e quando já ia saindo eis que encontra a diretora, que chegava esbaforida, mal humorada, cheia de bobis e outros penduricalhos na cabeça e toalhas pelos ombros.
- Tive que deixar de cuidar da minha beleza porque soube que o senhor, seu Lucas, anda falando aboborinhas e insuflando os alunos contra a direção da escola, na minha pessoa, foi isso mesmo? – Perguntou a espevitada diretora.
- Foi, foi isso mesmo. E digo mais: você não passa de uma velha muito feia, mal amada, mal educada e mal cheirosa. E passe bem, maluca! – E saiu sem nem socorrer a diretora que procurava um jeito de desmaiar naquele mesmo instante.


continua...




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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