SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 29 de junho de 2010

DONA SINHÁ: RETRATOS, PALAVRAS E ENCONTROS (Crônica)

DONA SINHÁ: RETRATOS, PALAVRAS E ENCONTROS

Rangel Alves da Costa*


Seu cabelo já estava totalmente embranquecido, nuvens bonitas de lã que passeavam quando o vento soprava mais forte. A pele, com as cicatrizes e marcas do tempo, refletia os muitos e muitos anos vividos, num itinerário de alegrias e sofrimentos guardados no baú da memória. O olhar ainda bem vivo, nos olhos já opacos pelas miragens de sempre, era espelho e reflexo de fatos e acontecimentos que dá vontade de chorar só em lembrar.
As pernas ainda se erguiam fraquinhas, mas o andar quase não existia mais, apenas uns pequenos passos ao redor do enorme casarão de sala, varanda e quarto. Tão pequena que era a casa que não cabia nos seus aposentos as muitas lembranças que faziam moradia ali e viviam rondando o ambiente como espíritos bons que não querem partir.
Praticamente dia e noite sentada na varanda, de onde via o mundo e tudo, estradas, horizontes, plantas e bichos adiante, moleques brincando, conhecidos passando, estranhos chegando. Sua neta só chegava ali depois do entardecer, depois da escola e do namorar, para fazer uma coisa e outra, preparar o mingau e o banho, perfumar e dar remédios. Era boa essa menina, que muitas vezes deixava de ver televisão para ficar conversando com sua vó sobre os tempos idos.
A neta podia fazer o quisesse na casa, inventar de comprar novidades e remexer nos panos e lençóis, trocar os móveis de lugar, mas não podia, sob hipótese alguma, dar fim ao mobiliário antigo, fazer sumir as lembrancinhas que enfeitavam a prateleira e estavam espalhadas por cima de tudo e nem trocar de lugar as muitas fotografias antigas, amareladas e tristes colocadas nas paredes da sala e do quarto. Sua família estava ali, seu pai e sua mãe estavam ali, filhos, netos e bisnetos, todos estavam ali, dizia a velha senhora. Já que boa parte havia morrido e muitos estavam distantes, então se contentava em conversar com os seus através das fotografias.
Verdade é que conversava mesmo, de viva voz, falando com os retratos para quem quisesse ouvir, e coitado daquele que dissesse que Dona Sinhá estava broca, variando, falando sozinha ou vendo fantasmas. Recebia um troco na mesma hora: "Se você não respeita os seus, deixe-me viver e prosear com os meus!". E prosseguia no seu diálogo com os velhos retratos: "Sirineu, aí não deve ser tão safado como era aqui, hein cabra veio?", "Judite minha filha, como você está bonita e como estou com saudades", "Joãozinho, por que você se foi tão novo meu filho, deixando sua avó aqui nessa tristeza toda?", "Petinha, que falta você faz", "Maria não esqueça de dizer ao homem que guarde um lugar bem bonito pra mim, que breve estarei por aí...".
E assim, quando não estava na varanda conversando com a vida, com a natureza e os passarinhos, ficava as tardes inteiras conversando com suas fotografias. E tinha dias que escurecia e ela no maior diálogo com seus retratos, com os seus vestígios, com os seus entes queridos. Se fosse somente isso até que sua neta compreendia, vez que também sentia muitas saudades de seus parentes e mais de vez se viu conversando em silêncio com eles. O problema é que de uns tempos pra cá sua avó cismou de ter, dia e noite, um pequeno baú cheios de lembranças sempre ao colo.
Numa noite, quando sua neta perguntou porque não largava mais aquele baú que só tinha cartas antigas e velhas fotografias, Dona Sinhá respondeu: "Estava só olhando e conversando com os retratos na parede, agora posso abrir as portas dessas fotografias aqui e ir encontrar com quem eu quero. Ontem mesmo não suportei a saudade e fui visitar o meu velho Sirineu, abri a porta do retrato e fui lá dar um abraço nele. E ele me deu essa flor aqui, veja que bonita". E mostrou uma linda flor de lírio. A neta quase desmaia. Verdade é que alguém havia dado aquela flor à sua avó, pois ela estava ali toda bonita e cheirosa. "Será, meu Deus?". E não pôde conter as lágrimas.
Dois meses se passaram desde que Dona Sinhá partiu, morreu conversando com alguém e dizendo que já estava indo. E foi. Numa tarde, quando a neta ia passando com a velha cadeira de balanço para colocar na varanda e sentar um pouco, ouviu uma voz vindo de uma fotografia na parede. Olhou e Dona Sinhá parecia sorrindo: "Quando puder converse comigo minha neta querida!".




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: