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domingo, 13 de junho de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 14

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 14

Rangel Alves da Costa*


Lucas adormeceu ali mesmo na sala, nem bem sentado nem deitado no sofá, apenas reclinado num sono profundo com a bíblia na mão, mais precisamente com alguns dedos viajando pela história da cristandade, pelos livros sagrados, salmos e versículos. Ainda chovia lá fora, a porta estava aberta, a escuridão gotejante fazia antessala ao rapaz de muitos planos há instantes atrás. Seria bom sonhar com todos sendo realizados, praticados, vivenciados. Mas não, pois os sonhos daquele adormecer seriam outros, e em alguns instantes presenciados por pessoas que conhecia e amava muito, e em outros por amigos ainda desconhecidos que o amava e buscava proteger.
Assim, dormindo profundamente nem percebeu os seus falecidos pais que chegaram por ali, passearam pela casa, se puseram diante do filho com feições alegres e até lhe acariciaram os cabelos e tocaram levemente no seu rosto. Cochicharam entre si algumas palavras, apontaram para os aposentos da casa, fizeram algumas menções que ninguém podia compreender. Abençoaram silenciosamente o seu menino e depois partiram na mesma névoa que chegaram. E o vento soprou mais forte, a porta bateu levemente, pingos trazidos pela corrente de ar tocaram nos pés de Lucas, sem molhá-los. A chuva caía e ele dormia, e quem dera saber o que estava acordado na sua cabeça.
A todo instante anjos estavam presentes ali, na sala, na casa, nos passos, na vida de Lucas. Eram dois anjos de hierarquias diferentes: um anjo da guarda, destinado a acompanhá-lo desde o nascimento, protegendo, orientando e guiando, e o anjo do Senhor, enviado em missão especial para acompanhar as transformações que deveriam ocorrer na sua vida, zelando para que os mistérios do destino fossem cumpridos e harmonizando as situações contraditórias existentes para que fosse possível prevalecer o que estava escrito. Este era um anjo forte, destemido e obediente às ordens superiores, pois nem sempre possuía missão que lhe alegrava os olhos e confortava o coração. Muitas missões, na verdade, eram muito mais sacrificantes do que prazerosas.
O anjo da guarda parecia dormir um sono mais profundo do que o seu protegido, já o anjo do Senhor, que nunca se desvencilhava dos afazeres de sua missão, era inabalavelmente presente com seu porte majestoso, com sua beleza, sua luminosidade e seu poder de dar uma sensação de segurança e paz onde estivesse. Ali, por exemplo, espantava para bem longe, para o seu devido lugar, as forças negativas da noite, os inimigos do sossego e do bom descansar, as influências más que tentavam pairar pelo ar até encontrar brechas para se instalar nos corpos indefesos, nas almas mais fragilizadas. Era o senhor do momento, da manutenção da pureza para que as transformações pudessem ocorrer.
O anjo do Senhor, senhor de Lucas naqueles momentos e sempre, talvez, era o mesmo anjo que apareceu e falou com sua mãe algum tempo antes de sua morte, que asseverou da morte do casal, que possibilitou o encontro de sua irmã Lúcia com este que atualmente é seu esposo, que sabia que ele acabaria morando sozinho, que fez com que o carro do sacerdote enguiçasse e este fosse procurar abrigo na sua casa. Este mesmo que fez chover, que fez com que a bíblia do padre fosse esquecida, que abriu suas páginas, que trouxe muitas lembranças à sua mente, que detalhou planos e mais planos na sua cabeça, que trouxe o cansaço e o sono, que o fez adormecer.
O anjo do Senhor sabia o que ele estava sonhando porque povoou sua mente com os sonhos que deveriam ser sonhados naquela noite. Por isso mesmo é que Lucas se via caminhando por uma estrada às vezes estreita e às vezes bem larga, ora na claridade ora na escuridão, algumas vezes com campos verdejantes e floridos à sua frente e outras vezes com paisagens áridas e todos os tipos de misérias se alastrando sobre a terra; dos dois lados dessa estrada haviam multidões, só que de um lado pessoas felizes, sorrindo, acenando na sua passagem, e no outro pessoas enraivecidas, pronunciando palavras de ódio e jogando pedras e outros objetos sobre ele. O anjo via tudo isso, pois foi ele que povoou a mente de Lucas com tudo isso.
Dos sonhos podem ser tirados proveitos, exemplos, mas que lições poderia tirar Lucas deste sonho. Ele mesmo talvez jamais soubesse, porém o anjo do Senhor sabia de tudo.


continua...




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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