SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 2 de junho de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 3

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 3

Rangel Alves da Costa*


Depois dessa conversa inesperada à mesa da cozinha e diante do entristecimento que começou a se abater em cada um, mesmo que tudo fizessem para fingir alegria e felicidade, passaram-se três sóis e no adormecer do quarto sol, assim que o dia já tomava ares de escuridão, o anjo estava ali, invisível, para presenciar o que somente ele já sabia: Quando retornava do quintal, onde tinha ido retirar umas roupas do varal, Isaura teve um súbito mal-estar e caiu morta ali mesmo.
O próprio anjo se encarregou de amenizar o sofrimento da família. Assim, a morte de Isaura não se transformou em infindas lamentações, gritos de dor e inconformismo com os poderes divinos que não evitaram aquela situação fatídica. E era para ser assim mesmo, como se parte do mundo tivesse acabado com a despedida daquela boa senhora e mãe. Certamente que os corações estavam agonizando e aflitos, só que transformados pelo anjo num tipo de entorpecimento e aceitação daquela realidade. Ao menos era isso que parecia.
Nos dias seguintes ao adeus, Erasto se esforçava cada vez mais para estar sempre trabalhando. Dia e noite se trancava na sua saleta de trabalho ao lado dos muitos couros, canivetes, agulhas e linhas, fazendo ainda soar desesperadamente a velha máquina para pregar os enfeites e botões nos seus objetos. Até se ouvia ele aboiar velhas cantigas tristes de vaqueiros solitários: "Vai boiadeiro que a noite já vem, tange o seu gado e vai pra junto de seu bem...". Quase não saía desse lugar e quando os filhos reclamavam do exagero no trabalho ele simplesmente dizia que era melhor trabalhar intensamente o couro do que passar a maior parte do dia pensando em certas coisas. Não dizia quais eram as certas coisas. Mas se imaginava, se imaginava...
Mas um dia, sem que o artesão, ou seleiro como outros chamavam, percebesse a presença de alguém no seu local de trabalho, seu filho Lucas ficou no canto só observando como o pai tanto trabalhava, o que tanto produzia. E o que viu foi de lhe cortar o coração. O velho, riscando atabalhoadamente um pedaço de couro e mais outro, chorava pesadamente, pausando essa intensidade das lágrimas ora com um aboio triste baixinho, ora com palavras pronunciadas pela voz trêmula: Isaura, onde você está Isaura? Me leve com você Isaura. O que é a vida agora, o que é a vida Isaura? E entoava um aboio triste...
Lucas e Lúcia ficaram desesperados com essa situação do pai, com tudo aquilo que ele procurava expressar somente quando achava que estava sozinho, quando nem imaginava que alguém pudesse estar lhe observando, sentindo também o seu sofrimento. Contudo, resolveram não falar nada sobre isso, não forçar que falasse porque estava agindo assim. Se tudo aquilo era um modo de não querer demonstrar para os filhos a dor da saudade e da insuportável vivência sem sua amada, então que fosse como ele achasse melhor. Se aqueles gestos desesperados eram como compensações, então que a expressão solitária da dor fosse uma forma de diminuir a dor exposta num coração sertanejo.
Contudo, a situação ficou insuportável para os filhos quando o velho Erasto começou a dizer coisa com coisa, pronunciar frases inteiras sem nenhum sentido e pregar um botão numa alpercata de couro dizendo que estava fazendo um alforje ou costurando uma sela. Chegou a se vestir todinho de vaqueiro, com todos os apetrechos de couro, subir no jegue mais magro que tinha e dizer que partiria naquele cavalo alazão em busca de sua Isaura. Ao fazer isso já não importava que os filhos ou outras pessoas estivessem vendo. Não se incomodava com mais nada porque o juízo estava afetado, já lhe faltava o discernimento para o certo e para o errado. Tinha enlouquecido o velho Erasto. A mente do velho artesão sertanejo agora só produzia peças estrambólicas, coisas do outro mundo.
E nessa loucura se passaram mais três estações, e na quarta, quando era tempo de verão e o sol sertanejo se arma para açoitar a vida de homens e bichos, para beber do resto das lágrimas dos olhos sofridos, o velho Erasto se foi. Morreu enquanto dormia e sonhava um sonho louco demais: Viu um anjo um anjo chorando, viu uma moça bonita correndo e viu um rapaz sozinho no mundo. E como as feições desse menino pareciam com as de seu filho Lucas...


continua...




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: