*Rangel Alves da Costa
Até os onze anos de idade eu fui menino de pé
fincado em Poço Redondo. Depois disso, em 74, fui forçadamente arribado para a
capital. Em nome do estudo que o sertão não podia oferecer, então fiz o caminho
inverso do passarinho: uma liberdade que me aprisionava, pois nunca gostei da
capital.
Saí de Poço Redondo na Marinete de Seu Vavá.
Certamente não olhei para trás enquanto o velho ônibus ia entre roncos e
solavancos pela estrada de chão. Não menos que cinco horas de viagem. E parando
ali e acolá para que passageiros entrassem com galinha, gato e cachorro.
E não olhei para trás para não avistar aquele
Poço Redondo que era minha vida. Desde cedo que eu era muito interessado pelos
livros, pelas lições, pelo desenho e pela escrita, mas muito mais pela vida
bucólica e de alegre liberdade por todo lugar. Nas ruas nuas, sem asfalto ou
cimentação, a liberdade de correr, de brincar, de ser menino traquina.
Uma liberdade que dava a mim e a todos de
minha idade - que fosse menino ou menina - o direito de viver a meninice em sua
plenitude. Nada igual aos banhos debaixo de chuva, um monte de meninos nus
correndo pelas ruas, jogando-se nas poças, escorregando pelas calçadas lisas.
Um monte de meninos quase num mesmo patamar
de idade. Eu, Zé de Delino, Toninho, Chiquinho, Carlinhos, Washington, Zelito,
Tonho José, Vadinho, Raimundo, Jorge, dentre tantos outros, a feição da
meninada compromissada apenas em viver sua idade.
Arremessar bola de gude nos buracos estreitos
abertos no chão, caçar passarinho com arapuca e peteca baleadeira, brincar de
pega-de-boi onde o boi era um escolhido entre a meninada, reinar pelos
quintais, roubar goiaba madura. Quem se atrevia a entrar no quintal de João de
Terto para roubar umbu-cajá?
Jorge de Iolanda era um dos mais ricos da
meninada. Talvez o milionário entre os meninos. Ele possuía tanto dinheiro de
papel de cigarro que deixava todos os outros como verdadeiros empobrecidos. Não
só rico como investidor, enriquecendo ainda mais.
Investia grandemente na sua fazenda de ponta
de vaca. Havia um canto no quintal de Dona Iolanda e Seu Zé de Iaiá, seus pais,
que era cheio de ponta de vacas. Ali era sua fazenda, uma fazenda de pontas de
vacas. O menino que quisesse comprar uma ponta boa, graúda, lisinha, era só ir
lá que Jorge de Iolanda tinha. O pagamento? Ora, com dinheiro de papel de
cigarro.
Já Tonho José de Jovita era hábil fabricante
de jogador de botão de plástico. Ele pegava uma forminha que sempre acompanhava
lata de Leite Ninho, colocava dentro plástico retorcido e depois colocava as
forminhas junto às brasas do fogão de lenha na cozinha de Dona Jovita. Quando o
cheiro subia era só puxar as formas. Deixava esfriar e depois alisava no
cimento crespo. De repente já estava pronto o maior dos craques.
E o melhor campo para jogar era ali mesmo ao
lado de sua casa, numa calçada grande que se estendia ao pé de umas pequenas
casas e salões padronizados ali então existentes. Ainda hoje funcionam alguns
órgãos naquelas antigas construções. Então os meninos deitavam a barriga no
cimento liso e começavam a jogar com os times de botão.
Daqueles tempos também as memórias das cheias
do Riacho Jacaré e seus murmurejos noite adentro. No meio da noite de trovoadas
e de chuvas grandes nas cabeceiras, de repente ouvia-se os gritos: A cheia no
Riacho, a cheia no Riacho! Mas nem precisava avisar, pois o barulho das águas
tomava toda a cidade.
Mas, como eu disse inicialmente, somente até
os onze anos eu vivi a plenitude da criancice no meu Poço Redondo. Depois
disso, somente de quinze em quinze ou em épocas de férias. Mas o amor continuou
o mesmo e o menino também. Na verdade, nunca cresci o suficiente para
desapartar de vez da criança nascida de Peta e de Alcino.
Sou aquela criança ainda, eu bem seu. E tanto
sou que vivo muito mais dessa memória do que pelo restante da caminhada. Muito
consegui depois disso, também sei. Mas nada igual a preservar na alma aquela
doce e distante raiz criança, de menino sertanejo.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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