*Rangel Alves da Costa
Sertão. O sol já arribou de vez. Sua última
labareda avermelhada acabou de abrasar. O pôr do sol já se pôs com seu ninho e
tudo. Os horizontes já não estão mais pincelados de fogo e vermelhidão. Agora
tudo cinzas e sombras. Tudo amarronzado e nuvioso. É boca da noite.
Boca da noite que no sertão principia o
verdadeiro anoitecer. É a partir da boca da noite que chega a escuridão, que
faz toda a paisagem se alongar em cores negras, mas que logo serão tingidas
pelo dourado da lua.
Um chamado à lua que já desponta faceira.
Chega distante, pequenina, devagar, para logo engrandecer como as paisagens
sertanejas ao silêncio do anoitecer. Lua imensa, brilhosa, bonita, uma festa lá
em riba, uma festa por onde avança sua singela luminosidade.
Não há mais cacarejo de galinha, não há galo
azucrinando a vida no poleiro. As festas de quintal e cantos de cerca já
cessaram de acontecer. O cachorro repousa num canto. Pela janela aberta o
frescor do instante vai ameaçando apagar o candeeiro.
Candeeiro de pouco gás, fumaça escurecida
saindo do bico enferrujado, também pouca luz, por isso a porta aberta para a
lua entrar com São Jorge e tudo. Mas não há lua maior, não há brilho maior, não
há chama maior, que a luz da vela acesa.
Assim que o sino da igreja da memória ecoa -
pois há na memória um relógio que nunca se esquece de badalar - eis o instante
de Mariazinha caminhar em direção ao seu canto de parede e aí, aos pés do velho
oratório, se ajoelhar para a oração de todo dia.
Canto de parede da sala de cipó e barro ou no
cantinho do pequeno quarto de dormir, sempre um velho oratório por cima de
mesinha rústica ou mesmo tronco de madeira já carcomido de tempo. Aí colocado o
céu, a casa de Deus, o portal da salvação de um povo.
Oratórios ainda continuam de maior abnegação
religiosa. Atualmente não, mas noutros idos não havia casa que se prezasse que
não tivesse uma igrejinha de madeira, de portas e lados envidraçados,
guarnecida de santos, fitas e lembranças religiosas, o oratório.
Entre aqueles de fé maior, o oratório
constitui verdadeiro templo sagrado, uma moradia santa na vida terrena, um
altar para santos e anjos em meio ao lar familiar, um pedestal de madeira onde
Deus possui seu trono perante o frágil humano.
Assim, em determinados instantes do dia,
principalmente ao alvorecer e ao anoitecer, mas também ao meio-dia, dirigir-se
ao oratório e perante ele se ajoelhar é como estar numa igreja, é como estar ao
portal do céu, é como estar perante os sagrados mistérios.
Mariazinha, de raiz fincada no beatismo, na
devoção religiosa maior, também possuía o seu céu ali num cantinho do quarto
pobre de sua humilde moradia. Oratório herdado de sua mãe, e a esta chegado
desde sua avó. Naquele pequeno céu a sua relíquia maior.
Céu de madeira e antigas imagens sacras que
todo santo dia recebia a visita de Mariazinha. Não saía do quarto ao alvorecer
sem antes se ajoelhar aos seus pés, fazer as costumeiras orações, pedir por si
mesma e pelos seus, agradecer os préstimos recebidos.
Mas nada igual à visita que fazia quando a
boca da noite chegava, depois que o sino da memória anunciasse a hora sagrada,
a Ave Maria sertaneja, o ponteiro das seis horas da noite. Era como se a partir
desse instante seus passos já não soubessem ir a outro lugar senão perante o
altar de seu oratório.
Mariazinha não arreda nunca deste encontro
sagrado. Corre de onde estiver para não perder seu mistério de fé. Nada que
estiver no fogo de lenha consegue impedir que aquele instante seja mais
importante do que tudo na vida. Que queime o toucinho, não o desejo da sagrada
presença.
Segue, vai, corre, mas de repente já está
dentro do quarto, ajoelhada, contrita, com as mãos entrelaçadas junto ao peito,
olhos fechados e boca sussurrando palavras de fé, de repente, ao abrir os
olhos, diante de si a face de Deus. Sim, a face de Deus na luz da vela acesa.
Mistério maior dos maiores mistérios. Em toda
vela acesa pode ser avistada a face de Deus. Não que o olhar humano assim
consiga avistar, mas pelo que os corações humanos conseguem avistar. A face de
Deus somente avistada pela inabalável fé através dos olhos do coração.
Mãos que seguram rosários, terços,
relicários. Bocas que silenciam e que gritam em silêncio, que apenas sussurram
ou dizem as rezas, as orações, os rogos, os pedidos. Mas somente o coração
consegue avistar a face de Deus perante a vela chamejante da fé.
Uma face sagrada que é assim avistada por que
a fé e a devoção chamam o Senhor para além do olhar, para bem juntinho do
coração!
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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