*Rangel Alves da Costa
Os anos
correm com o fôlego do tempo e quando olhamos para trás quase já não nos
avistamos mais. Sentimos nosso envelhecimento pelos outros que nascem e que
crescem e não pelas marcas e rugas que passamos a carregar. Nossas marcas de
tempo ficam como ocultas e sequer percebemos o quanto já caminhamos na estrada.
De repente
olhamos para um rapazinho ou uma mocinha e nos espantamos de que aquela vida é
filho ou filha de um amigo de infância. Um jovem que passa, uma moça que passa,
então a surpresa de sua filiação. Já? Então nos perguntamos. Mas ali também a
nossa idade, pois enquanto eles nascem, crescem e se tornam adultos, em nós
apenas os passos do envelhecimento.
E outros e
mais outros vão surgindo e em nós o envelhecimento ainda maior. Contudo, ainda
sem atentarmos o quanto os espelhos tentam a todo instante nos dizer e nos
alertar. Mas não há outra verdade. Um percurso aonde a flor viçosa e bela vai
perdendo seu viço e perfume até pender de vez no jardim da existência.
Mas será
que nunca nos reconhecemos envelhecendo senão pelos outros? Será que nunca
ouvimos nem sentimos as verdades refletidas no espelho? Através da memória há
esse forçoso reconhecimento. Através da memória a chegada de um calendário que
não nos nega o tempo de existência.
Quanto
mais coisas antigas nós recordamos mais dizemos dos nossos anos vividos. Quanto
mais os velhos álbuns da memória vão passando suas páginas amareladas mais nós
temos a certeza de que já não somos de ontem. Quanto mais nos lembramos de
coisas velhas, antigas, de outros tempos, mais aproximados desse tempo também
estaremos.
Então
responda: Você se lembra de minha avó Marieta na calçada? Sim, naquela calçada
da casa bela de esquina, na Praça da Matriz de Poço Redondo, de arquitetura
majestosa, sobressaindo-se perante as demais construções? Talvez a casa mais
conhecida e mais recordada da cidade sertaneja.
Conhecida
não só pela arquitetura como pela história. Deveras, ali mesmo o Capitão
Lampião um dia chegou acompanhado de seu bando e logo ficou sabendo da presença
do Padre Arthur Passos num dos quartos. E agora, o que fazer, ante a cruz e o
mosquetão? Acabaram dividindo o mesmo regabofe sortido de buchada e carne de
bode. Mas isso coisa de outros tempos.
Mas
voltando à minha avó na calçada, quem tem por volta de vinte anos ou até mais
certamente não vai recordar. Minha avó Marieta, por todos conhecida como Mãeta,
já miudinha pelo envelhecimento, sentando ao entardecer em sua calçada para
abençoar todo poço-redondense que por ali passasse. Ela simbolizava a própria
maternidade sertaneja.
“Bença,
Mãeta”. “Deus abençoe, meu filho”. “Bença, Mãeta”. “Que Deus lhe acompanhe, meu
filho”. Com todo mundo era assim, desde o mais novo ao mais velho. E tudo mundo
pedia sua benção ao passar por ali. Mas já desde muito que aquela calçada não
existe mais, que aquela casa não existe mais, que Mãeta não está entre nós.
O mundo de
Mãeta era aquele depois do envelhecimento, estar apenas na calçada depois do
entardecer, vez que já não frequentava a igreja com a assiduidade de quanto
mais nova e com forças para caminhar. E quem sabe ali na sua cadeira ela não
ficasse relembrando outros passados, coisas muito mais envelhecidas?
Não sei se
em sua mente a idade surgia como um distanciamento daqueles tempos idos, mas
tenho certeza que ela sabia que somente havia chegado àquela fase da vida por
ter ultrapassado muitas curvas do caminho. Ela estava velha por que havia
vivido muito. Mas a maioria das pessoas se reconhece envelhecida pelo tempo da
caminhada?
Muitas
pessoas fogem do tempo, dos anos, da caminhada, chegando até a negar a idade.
Muita gente quer passar a ideia de uma eterna juventude em um corpo carcomido
de tempo. Mas vale a pena querer ser outra pessoa quando o seu íntimo, sua
biologia e sua compleição física, não atendem tal desejo?
Minha avó
Marieta era teimosa, arrelienta, mas nunca negou a idade. Foi se reconhecendo
sábia pelos frutos colhidos pela estrada. Por isso mesmo o reconhecimento com
uma mãe de todos, uma parenta de todos, uma avó de todos. Nela certamente
avistava o respeitoso envelhecimento. Mas qual o reconhecimento na idade
própria daqueles que ali passavam pedindo a benção?
A maioria
dava a benção e seguia adiante. Não imagino que alguém se imaginasse em
envelhecimento sentado ao entardecer numa calçada. Ninguém pensava em velhice,
tudo como se o tempo fosse somente o momento. E hoje muito tempo já passou.
Muita
gente ainda a recorda como se tudo ainda fosse um retrato guardado na memória.
E se há essa viva recordação, é por que os anos já deixaram marcas muito além
da memória. E o envelhecimento vai, inexoravelmente, chegando.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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