*Rangel Alves da Costa
Muito mais que as conveniências de agora, o
conceito de honra já foi resguardado ao pé da letra. Como se tirasse dos
dicionários a própria personalidade, em muitas situações não se permitia
qualquer afronta ou mácula ao conceito impingido na reputação.
Com efeito, consta dos livros ser a honra uma
das virtudes da personalidade humana. E os dicionários dizem ser aspecto
comportamental que age valorizando a honestidade, a dignidade, a integridade
moral e a valentia, dentre outras características. Relaciona-se principalmente
à preservação do nome e ao reconhecimento do caráter.
Noutros idos, tal a importância da honra que
a sua mínima mácula já resultava em confronto direto para reparação da desonra
cometida. Nada mais aviltante que ser desonrado, ter seu nome enlameado, por
outra pessoa. Daí que muitas máculas não só abriram chagas no caráter de muitos
como a sua reparação gerou verdadeiras vinditas de sangue.
Não só a honra pessoal com a familiar devia
ser reparada. No contexto familiar, qualquer um que fosse aviltado seria como
se todo o núcleo fosse igualmente ferido no seu caráter e dignidade. E a
desfeita podia recair não só contra a pessoa perpetrada da desonra como noutros
membros de sua família. Era a cegueira do ódio não mais escolhendo a quem
atingir.
Quando uma mocinha de boa família – ainda que
com livre consentimento dela – saía grávida antes do casamento ou mesmo sem
jamais ter namorado abertamente com o dito malfeitor, uma verdadeira guerra era
aberta. Ou o sujeito casava ou tinha de arcar com as consequências da desonra
familiar. Neste caso, a mocinha grávida era deixada de lado para que as forças
da violência tomassem as rédeas do troco a ser dado.
Quando poderosos senhores se entrecruzavam em
rixas, desafetos e outras brigas, e como cada um se sentindo desabonado pela conduta
do outro, então era certeza do uso de armas, de sangue derramado, de uma guerra
sem fim. Como os senhores donos do mundo não se confrontavam pessoalmente, mas
somente através de seus cabras, então as tocaias de sangue e as emboscadas
mortais tomavam todas as estradas e caminhos.
O poder, o latifúndio, o dinheiro, o mando, o
ranço coronelista, sempre impregnava de falsa honradez mesmo aquele do mais
enlodado caráter. A reputação inexistente era transformada em semeadura de
medo, em perseguição, em violência. E ai de quem falasse do coronel ou de seu
clã familiar. A proteção ao nome era sempre pela arma e pela investida
sangrenta.
Era em nome da honra que as valentias se
exacerbavam. Muitas vezes, a única reputação havida era do mau-caratismo, do
temor espalhado e da valentia propalada, mas ainda assim fazia dessas
invirtudes um modo de se autoproteger atacando. Por consequência, a criação de
uma fama que se interiorizava como virtuosa quando, na verdade, não passava de
um enlodamento moral.
E na defesa da honra todos os meios e todas
as armas. Da palavra ferina à emboscada, absolutamente tudo parecia válido. E
não havia limites de reparação. Quando os ódios exacerbavam, os confrontos
deixavam de ser pessoais para se tornar em guerras abertas. Famílias inteiras
se digladiando com famílias inteiras. Mortes de lado a lado, mas a cada morte
se abrindo ainda mais as feridas já abertas.
Pequenas rixas por terra ou poder, por brigas
pessoais ou por crimes cometidos, logo se transformavam em rios de sangue. Ora,
se alguém de uma família era vitimado, então dois da outra também tinham que ser
derrubados. E foi por guerras assim que povoações e cidades inteiras se viram
também vitimadas pelas violências constantes. E os ódios e os rancores eram tão
aflorados que sequer um membro de uma família podia encontrar o da outra. Tudo
era motivo para que os confrontos recomeçassem e mais uma vez vitimassem num sequenciamento
sem fim.
Por muito tempo as terras sertanejas
padeceram por tais defesas de honras, fossem justificadas ou não. Por anos e
mais anos famílias inteiras se deram ao sacrifício de enterrar os seus numa
guerra nascida do quase nada, porém sempre alimentada pelos ódios crescentes.
Muitas vezes já não se pensava sequer em se defender, mas tão somente procurar
meios para retribuir a violência com mais violência.
Houve um sertão assim enlameado de sangue.
Resquícios ainda existem dessas monstruosas conflagrações. Por mais que a ideia
de pacificidade tenha chegado, os olhares dos rixosos ainda se cruzam como se
carregando fuzis e mosquetões. E prontos para recomeçar o acaba-mundo sertões
adentro.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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