*Rangel Alves da Costa
Quando, na noite de abertura do Cariri
Cangaço Floresta 2017, a mestre de cerimônia Ana Gleide Souza Leal anunciou uma
evolução com bailarinos, creio que denominada “O Voo do Carcará”, logo meu
pensamento arribou céus acima para, pelas caatingas e carrascais ensolarados,
avistar aquela ave tão emblemática e tão sertaneja.
Carcará, bicho carnicento, ave agourenta,
bico de punhal afiado, rasgante em rasante, seu fio da mardade sem fim. Tu,
devorador de agonias, devastador de sopros de vida, furador dos olhos de
borregos, bezerrinhos e crias sem mais força de nada. Em rasante chega, matreiro,
oculto, traiçoeiro feito a moléstia, dos escondidos além dispara com sua lâmina
no bico. Fio da gota serena és tu marvado carcará!
Vai-te pra lá bicho dos quintos,
assombramento que se regozija dos sofrimentos e das desvalias. Das secas
fazendo o prato, das fraquezas estiradas fazendo sua gula. Sozinho faz sua
guerra, tudo destrói, fura, pinica, faz a sangria, deixa a vida esvaída pelos
campos esturricados. Que se imagine trazendo nas sombras o urubu, o gavião, a
mãe-da-lua?
Mas ali na calçada do Batalhão, no espaço
largo da cerimônia, apenas a poesia. E não haveria alegoria mais acertada que
aquele voo do carcará. Ora o carcará é bicho com a mais acabada feição do
sertão sofrido, do sertão padecente, do sertão chorando sua dor pelos
esquecimentos das nuvens prenhes de chuvas. Ali era festa, ali era alegria, ali
era comemoração, mas não se poderia esquecer aquele outro sertão. E o outro
sertão estava ali no voo do carcará.
Dois bailarinos. Um rapaz e uma moça, dois
belos sertanejos. Quando anunciados e chamados por Ana Gleide, os passos pela
calçada até que ele se deitou. Ele deitou em posição dorsal, ela sentou-se
sobre o seu peito e assim permaneceram alguns instantes. Quando a voz de Zé
Ramalho começou a ecoar, então a música Carcará (de João do Vale e José Cândido)
abriu as porteiras daquela misteriosa arapuca. O carcará estava solto. Ou os
carcarás estavam soltos. E voaram. E voaram. E fizeram da noite florestana,
ante uma plateia tomada de encantamento, um ensolarado céu nordestino, ainda
que em noite de lua e flor.
Na evolução dos bailarinos, seguindo de canto
a outro, ora se esgueirando ora se fartando de avidez, o carcará procurando o
melhor momento para alçar seu voo. E que coisa mais linda: o voo do carcará.
Dois carcarás em pleno voo na noite florestana. Ele, o bailarino, rente ao chão
sertanejo, e ela, a bailarina, planando pelo céu sertanejo. Braços abertos,
asas abertas, um horizonte à frente, e o voo. Eles magistralmente voaram em
simbolismo, maravilhosamente voaram na fantasia por todos conhecida. E temida.
Os sertões aplaudiram aqueles carcarás da
noite florestana. Mas o sertanejo puxou na memória outros significados menos
festivos. O bicho carcará em voo rasante, voraz, veloz, medonho, cego, porém
certeiro, em direção à cria já em seu último suspiro. Fura os olhos do bicho,
do resto de luz faz jorrar o sangue, do sopro de vida faz surgir o último
suspiro. E depois futuca mais, bica, apunhala, retorce até desnudar as
vísceras. Mas o sertanejo não estava ali para entristecer, somente para
aplaudir aquela magnífica apresentação.
Ainda os vejo em voo, voando, voando. Ainda
ouço o som vindo naquela direção: “Carcará lá no sertão é um bicho que avoa que
nem avião. É um pássaro malvado, tem o bico volteado que nem gavião. Carcará
quando vê roça queimada sai voando, cantando, Carcará vai fazer sua caçada. Carcará
come inté cobra queimada. Quando chega o tempo da invernada o sertão não tem
mais roça queimada Carcará mesmo assim num passa fome. Os burrego que nasce na
baixada Carcará pega, mata e come. Carcará num vai morrer de fome. Carcará,
mais coragem do que home. Carcará...”.
Ainda voa. Pelos sertões ainda voa. E na
noite florestana deu um voo tão magnífico que ainda relembro o bater de suas
asas. Carcará.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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