Rangel Alves da Costa*
Alguns escritos dão conta que Virgulino
Ferreira da Silva, o Capitão Lampião, era homem possuidor de feições pouco
conhecidas. Alastrou-se espantosamente muito mais o seu lado tenaz, bravio,
guerreiro e até cruel e sanguinário. Fala-se muito no bandoleiro de sangue no
olho que nada temia no seu mundo catingueiro, no intrépido dos carrascais
espinhentos que devolvia em dobro o estampido de fogo, no algoz de todo aquele
que estivesse em seu encalço.
Muito se escreveu acerca das rixas entre
vizinhos e as perdas familiares que serviram como motivações ao enfrentamento
dos poderosos. A vindita particular do rapaz Virgulino se transformaria numa
guerra pública do sertanejo Lampião. Os seus desafetos se transformaram em
apenas alguns para serem avistados em todos aqueles que representassem o poder
opressor, a submissão do homem da terra, a perseguição ao fraco e a manutenção
da impiedosa balança condutora de todas as injustiças sociais. Os inimigos
então passaram a responder pelo nome de Estado, governo, política e poder.
Sobre tudo isso muito se escreveu.
Também muito se escreveu acerca do vaga-lume
que se transmudou em perigosa tocha de fogo. E assim para mostrar o quanto
Virgulino soube aproveitar os inconformismos do sertanejo de então para
transformar tantas iras em respostas organizadas aos desmandos continuamente
praticados. Outros grupos cangaceiros já preexistiam à sua chegada, e até fez
parte do bando de Sinhô Pereira, mas nenhum orientado estrategicamente por um
líder nato, nenhum que conseguisse despertar para suas fileiras tantas pessoas
que se sentiam perseguidas ou necessitavam fazer ecoar suas revoltas. E Lampião
foi mestre maior na condução desse levante até então apenas gestado.
Com os aparos e os recortes, o Capitão até
que se ajusta nessa moldura, mas nele havia outras vertentes conhecidas de
muitos, porém pouco disseminadas. A verdade é que pouco se escreveu acerca do
homem Lampião, o sujeito em si, aquele de sobrenome Virgulino Ferreira da
Silva. A maior parte do que foi dito e escrito - e em grande parte inventado -
diz respeito ao cangaceiro, ao líder de bando, àquele retratado no meio da mata
de chapéu estrelado, paramentos encourados e geralmente de arma em punho. Mas o
outro Lampião, aquele que estava no homem, no seu íntimo, onde estava e como
era?
Digo logo o nome do cabra que melhor assuntou
sobre isso: Pelôco de Biribeira, apelido de um hoje desconhecido cordelista e
repentista. Nascido na região do Mundaréu e tendo vivido até uns vinte anos
após a morte de Lampião em 38, ficou conhecido de feira e feira como o mais
fiel cantador dos feitos do Capitão. Não só dedilhava a história na viola como
transcrevia para o cordel toda a sua saga. Contudo, o folheto que mais fez
sucesso na voz e no papel foi um onde retratava o homem Lampião, ou o Virgulino
em si mesmo.
“As temeranças de Lampião” foi o título
consignado ao cordel que depois de pendurado no barbante em dia de feira se
transformou em sucesso absoluto. O folheto artesanal, rudemente impresso e com
capa de tosca xilogravura, parecia apenas mais um dos tantos escritos por
aquele menestrel das proezas debaixo do sol. Onde houvesse uma feirinha em
arruado e lá estava Pelôco da Biribeira levantando sua tenda de esteira e ripa
e fincando seus varais de barbante. Aí pendurava seus cordéis e depois sentava
num tamborete de viola em punho para cantarolar pelejas e feitos.
Mas por que o tal do “As temeranças de
Lampião” fez tanto sucesso pelo mundão interiorano? Ora, simplesmente porque
abordava o lado mítico do Capitão, envolvendo aspectos de sua religiosidade,
suas virtudes cristãs, seus receios pelas coisas do céu, suas crenças terrenas,
os seus temores enfim. Daí o termo “temeranças” no título, indicando que o
livreto tratava exatamente dos medos do maior dos cangaceiros. Deixando também
claro que o homem tão temido guardava consigo temores de coisas difíceis de
acreditar. Aspectos, pois, bem conhecidos do sertanejo perante o seu mundo
misto de fé, fanatismo e crendice.
Pelôco da Biribeira, mesmo sem o intuito da
pesquisa, foi buscar na oralidade nordestina essa vertente curiosa do Capitão.
Sertões adentro, de boca em boca, proseados se alongavam dando conta do imenso
fervor religioso de Lampião, do seu respeito incontido às coisas sagradas, do
seu devotamento. E também sobre o homem supersticioso de não acabar mais. Diz o
cordelista que não havia quem fizesse o Capitão pegar em arma na sexta-feira
santa, que logo arribava do coito se ouvisse uma ave agourenta piando a noite
inteira.
Atualmente muito já se conhece acerca da
feição religiosa de Lampião. Mesmo a luta sanguinária travada no dia a dia
jamais diminuiu seu fervor místico, sua devoção às coisas sagradas e seu temor
a Deus. Rezava todos os dias e levava consigo algumas orações, principalmente
para manter o corpo fechado. Tinha devoção especial por Padre Cícero, a quem
tinha como verdadeiro santo nordestino. Não admitia que cangaceiro de seu bando
brincasse com as coisas sagradas e maldissesse qualquer aspecto da fé católica.
É famosa a passagem onde Lampião e parte de
seu bando assistem missa celebrada pelo Padre Arthur Passos na igrejinha de
Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo. O vigário aceitou celebrar o ofício
perante os cangaceiros, mas com a obrigação de deixarem as armas pesadas do
lado de fora. E assim foi feito, com a fé em Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas
sobre os versos de Biribeira, alguns deles serão citados depois.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Pois é caro Escritor Rangel Alves Costa, o homem grandemente corajoso que era o Rei do cangaço, passava também pelos seus momentos de medo, tanto é que conservava suas superstições.
Antonio Oliveira - Serrinha desta nossa Bahia.
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