Rangel Alves da Costa*
Era um mundo mudo, silencioso, sem voz.
Ninguém sabia explicar – até mesmo porque ninguém falava – o porquê de aquele
lugar ficar sem palavra alguma de sua população.
Tudo aconteceu de repente. As pessoas conversaram
antes de deitar, falaram já em cima da cama, murmuraram segredos amorosos
debaixo dos lençóis, mas silenciaram completamente ao amanhecer. Todos
acordaram já sem voz.
Tomados de espanto, sem saber o que tinha
acontecido, abriam a boca sem parar, gesticulavam, forçavam gritos, mas nada de
sair um único som. Era a mudez absoluta, profunda, e em todos e por todo lugar.
Nunca se fez tanto chá como naquela manhã,
nunca se usou tanta romã para gargarejos, nunca a voz foi buscada de forma tão
insistente. Um olhava para o outro e falava tentando ser ouvido. O outro
respondia com a mesma voz do silêncio.
Parecia um mundo de mudos. Mas mudos mesmo,
de nascença. E mudos sem saber mais o que fazer para serem entendidos nos seus
gestos atrapalhados. Eram tantos gestos desconcertados que ninguém entendia
mesmo nada do que se pretendia dizer ou mostrar.
E o caos sem palavras permaneceu a manhã
inteira. Após o meio-dia tudo já estava mais calmo, com menos gestos e
confusões. Mas também as faces pareciam mais tristes no povo. O desespero pela
situação deixara de ser visível nos gestos para se instalar nas mentes.
As pessoas procuravam ficar sozinhas para
tentar compreender aquela apavorante situação, aquela estranha mudez.
Procuravam na solidão as respostas que não poderiam ouvir. E na mente chegavam
explicações de todos os tipos, até mesmo absurdas.
E logo imaginaram uma epidemia de mudez, um
vento mau que soprou tirando a voz enquanto todos dormiam, um castigo divino
pelos desnorteamentos do povo, um sinal de que algo muito mais terrível que o
silêncio forçado poderia acontecer: a cegueira.
E se depois da perda da voz viesse a perda da
visão, intimamente se atormentavam com tal pensamento. E o que seria de um povo
sem palavras e sem avistar mais nada da vida, era o redemoinho se formando na
mente.
Seria a morte em vida ou a vida sem vida.
Seria a perda total da razão de viver. Seria infligir às pessoas uma sina de
negação de si mesmas. E todos mudos, e todos cegos, certamente que logo
estariam todos loucos.
Entristecidos, sem abrir a boca ou olhar na
direção do outro, todos deitaram mais cedo nesse primeiro dia de silêncio
total. Não havia como comentar, mas a esperança era de que a noite resolvesse
todo aquele pesadelo e o amanhecer trouxesse novamente a voz.
Nunca se viu tanta gente ajoelhada em preces,
acendendo velas, com rosários e terços à mão, apenas tremulando os lábios nos
rogos de fé. Até mesmo quem nunca rezou ou sabia qualquer oração,
silenciosamente implorou a Deus debaixo dos panos ou nos escondidos.
Mas quase ninguém dormiu. A expectativa era
tão grande para o novo dia surgir, e com ele a esperança do retorno da palavra,
que apuravam os ouvidos para ouvir se o galo cantava logo. Mas o galo não
cantou. Também estava mudo.
Assim que as primeiras cores da alva surgiram
pelas frestas e buracos de janelas, todos levantaram num só passo. Mas que
desilusão no instante seguinte. Nenhuma palavra surgiu de qualquer boca. A
mudez continuava de forma aterradora. E agora mais espantosa ainda.
Muitos, já totalmente desesperados e crendo
que depois da falta de voz vem a falta da visão, simplesmente achavam que já
não enxergavam bem, que já estavam sendo tomados pela cegueira. E se recolhiam,
se escondiam nos escuros da casa para chorar um choro silencioso e agonizante.
Outros, achando que não mais pronunciariam ou
ouviriam qualquer palavra, então fugiam da presença de qualquer pessoa. Diziam
a si mesmos que era menos doloroso fugir da feição do próximo a estar
gesticulando aquilo que não poderia ser entendido. Como perguntar se ouvia sua
voz?
No dia seguinte o silêncio já parecia
normalidade. Quem havia enlouquecido já havia encontrado sua razão noutra
realidade. Mas os outros não mais procuravam forçar o surgimento de qualquer
palavra, sequer abriam a boca tentando imitar uma pronúncia. Apenas viviam o
silêncio.
E forçadamente foram se acostumando com a
mudez. Mas era estranhamente triste avistar aquele mundo sem palavras, sem
vozes, sem murmúrios ou gritos. Apenas pessoas e mais pessoas passando, indo e
voltando, se encontrando, mas sem um bom dia ou boa tarde. Nada.
Mas também se mostrava um mundo de paz,
sossegado, numa normalidade constante. Mas um dia, ao entardecer, a todos
pareceu ter ouvido uma voz, e por isso mesmo correram naquela direção. Era
apenas a ilusão da palavra.
Mas a maioria tinha certeza de ter ouvido: Sintam
quanto bem faz um mundo sem as palavras descomedidas. Sem as fofocas, as
gritarias, os palavrões e as baixarias, as violências verbais e os impropérios,
todos parecem se compreender e conviver no silêncio.
E talvez algum dia todos voltem a falar. Mas
somente quando aprenderem para o que foi feita a voz e qual uso dar à palavra.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Imagino que todos estavam escutando a voz do coração e o coração fala através dos sentimentos, mesmos os mais pavorosos.
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