SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 20 de janeiro de 2015

O MUNDO DO SILÊNCIO


Rangel Alves da Costa*


Era um mundo mudo, silencioso, sem voz. Ninguém sabia explicar – até mesmo porque ninguém falava – o porquê de aquele lugar ficar sem palavra alguma de sua população.
Tudo aconteceu de repente. As pessoas conversaram antes de deitar, falaram já em cima da cama, murmuraram segredos amorosos debaixo dos lençóis, mas silenciaram completamente ao amanhecer. Todos acordaram já sem voz.
Tomados de espanto, sem saber o que tinha acontecido, abriam a boca sem parar, gesticulavam, forçavam gritos, mas nada de sair um único som. Era a mudez absoluta, profunda, e em todos e por todo lugar.
Nunca se fez tanto chá como naquela manhã, nunca se usou tanta romã para gargarejos, nunca a voz foi buscada de forma tão insistente. Um olhava para o outro e falava tentando ser ouvido. O outro respondia com a mesma voz do silêncio.
Parecia um mundo de mudos. Mas mudos mesmo, de nascença. E mudos sem saber mais o que fazer para serem entendidos nos seus gestos atrapalhados. Eram tantos gestos desconcertados que ninguém entendia mesmo nada do que se pretendia dizer ou mostrar.
E o caos sem palavras permaneceu a manhã inteira. Após o meio-dia tudo já estava mais calmo, com menos gestos e confusões. Mas também as faces pareciam mais tristes no povo. O desespero pela situação deixara de ser visível nos gestos para se instalar nas mentes.
As pessoas procuravam ficar sozinhas para tentar compreender aquela apavorante situação, aquela estranha mudez. Procuravam na solidão as respostas que não poderiam ouvir. E na mente chegavam explicações de todos os tipos, até mesmo absurdas.
E logo imaginaram uma epidemia de mudez, um vento mau que soprou tirando a voz enquanto todos dormiam, um castigo divino pelos desnorteamentos do povo, um sinal de que algo muito mais terrível que o silêncio forçado poderia acontecer: a cegueira.
E se depois da perda da voz viesse a perda da visão, intimamente se atormentavam com tal pensamento. E o que seria de um povo sem palavras e sem avistar mais nada da vida, era o redemoinho se formando na mente.
Seria a morte em vida ou a vida sem vida. Seria a perda total da razão de viver. Seria infligir às pessoas uma sina de negação de si mesmas. E todos mudos, e todos cegos, certamente que logo estariam todos loucos.
Entristecidos, sem abrir a boca ou olhar na direção do outro, todos deitaram mais cedo nesse primeiro dia de silêncio total. Não havia como comentar, mas a esperança era de que a noite resolvesse todo aquele pesadelo e o amanhecer trouxesse novamente a voz.
Nunca se viu tanta gente ajoelhada em preces, acendendo velas, com rosários e terços à mão, apenas tremulando os lábios nos rogos de fé. Até mesmo quem nunca rezou ou sabia qualquer oração, silenciosamente implorou a Deus debaixo dos panos ou nos escondidos.
Mas quase ninguém dormiu. A expectativa era tão grande para o novo dia surgir, e com ele a esperança do retorno da palavra, que apuravam os ouvidos para ouvir se o galo cantava logo. Mas o galo não cantou. Também estava mudo.
Assim que as primeiras cores da alva surgiram pelas frestas e buracos de janelas, todos levantaram num só passo. Mas que desilusão no instante seguinte. Nenhuma palavra surgiu de qualquer boca. A mudez continuava de forma aterradora. E agora mais espantosa ainda.
Muitos, já totalmente desesperados e crendo que depois da falta de voz vem a falta da visão, simplesmente achavam que já não enxergavam bem, que já estavam sendo tomados pela cegueira. E se recolhiam, se escondiam nos escuros da casa para chorar um choro silencioso e agonizante.
Outros, achando que não mais pronunciariam ou ouviriam qualquer palavra, então fugiam da presença de qualquer pessoa. Diziam a si mesmos que era menos doloroso fugir da feição do próximo a estar gesticulando aquilo que não poderia ser entendido. Como perguntar se ouvia sua voz?
No dia seguinte o silêncio já parecia normalidade. Quem havia enlouquecido já havia encontrado sua razão noutra realidade. Mas os outros não mais procuravam forçar o surgimento de qualquer palavra, sequer abriam a boca tentando imitar uma pronúncia. Apenas viviam o silêncio.
E forçadamente foram se acostumando com a mudez. Mas era estranhamente triste avistar aquele mundo sem palavras, sem vozes, sem murmúrios ou gritos. Apenas pessoas e mais pessoas passando, indo e voltando, se encontrando, mas sem um bom dia ou boa tarde. Nada.
Mas também se mostrava um mundo de paz, sossegado, numa normalidade constante. Mas um dia, ao entardecer, a todos pareceu ter ouvido uma voz, e por isso mesmo correram naquela direção. Era apenas a ilusão da palavra.
Mas a maioria tinha certeza de ter ouvido: Sintam quanto bem faz um mundo sem as palavras descomedidas. Sem as fofocas, as gritarias, os palavrões e as baixarias, as violências verbais e os impropérios, todos parecem se compreender e conviver no silêncio.
E talvez algum dia todos voltem a falar. Mas somente quando aprenderem para o que foi feita a voz e qual uso dar à palavra.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Anônimo disse...

Imagino que todos estavam escutando a voz do coração e o coração fala através dos sentimentos, mesmos os mais pavorosos.