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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

CHÃO, HISTÓRIA E EXISTÊNCIA


Rangel Alves da Costa*


A dádiva de nascer, de fazer parte do mundo e da vida, está permeada de muitas significações. Não se dá por acaso o nascimento nem a existência de uma pessoa. Faz parte dos planos superiores que a vinda ao mundo ocorra em determinadas condições e lugar, predispondo o indivíduo perante o seu meio, perante o seu berço de nascimento.
Logo se tem que muito significa o nascimento num determinado lugar. Diante da imensidão do mundo, nascer neste ou naquele pedaço de chão é algo para ser profundamente considerado. Ora, já estava escrito que aquela pessoa nasceria, mas onde, em qual lugar, em qual família? Talvez no sul ou no norte, mas acabou vindo à luz num lugar bem diferente. Apenas para exemplificar.
Mas o fato de nascer num ou noutro lugar vai gerando importantes consequências. E talvez o reconhecimento e o amor pela terra, pelo seu leito de nascimento, sejam os mais importantes e aqueles que vão sendo aprimorados pela vida inteira. Daí que muitos lutam e defendem seu chão com insistência, não admitem menosprezos ou usurpações. E não foram poucas as batalhas travadas pelos filhos em nome de sua terra-mãe.
Negros escravos travaram batalhas de morte em defesa de seus refúgios quilombolas, comunidades inteiras se levantaram com armas em punho para lutar contra investidas forasteiras, indígenas se alongam em vinditas para que o branco não usurpe a morada de seus deuses e antepassados. Não foram poucas as lutas coloniais em nome do nativismo e na defesa da terra contra as invasões e desmandos estrangeiros. Muitos tombaram nessa luta e tantos outros ainda são vitimados por invasores que se acham no direito de esbulhar raízes e histórias de uma vida inteira.
O berço de nascimento acaba, assim, se transformando numa razão de vida para muitos. Não importa que tenha nascido em lugar rico ou pobre, num celeiro desenvolvimentista ou nas brenhas distantes de um sertão esturricado, nada disso importa. Não importa que o seu lugar seja marcado por feitos históricos ou geográficos ou que se mantenha no vão do esquecimento. O que importa mesmo é ter nascido ali e o orgulho consequente desse nascimento.
Não raro que a terra acabe também moldando a feição, a personalidade, o jeito de ser da pessoa. Sabido é que o meio possui grande influência na formação humana, no temperamento e aptidões. Assim, nascidos, por exemplo, em regiões sulistas, possuem características diferenciadas daqueles nascidos nos interiores molhados das regiões amazônicas. O mesmo se diga com relação ao nordestino perante povos nascidos noutros lugares.
Os sulistas possuem feições próprias, como os nordestinos e nortistas. Tais feições trazem consigo predisposições diferenciadas, seja para ser mais pacífico ou mais combativo, seja para o trabalho na terra ou para outros ofícios. Alguns lidam com rebanhos, outros são mestres nas vaquejadas; alguns fazem dos rios seus meios de sobrevivência, outros plantam e colhem para subsistir. Mas todos eles, indistintamente, refletem o seu meio de nascimento.
E por que os locais de nascimento geram pessoas com características próprias, em obediência às predisposições do lugar, é que se tem multiplicidade nos aspectos físicos, na cor da pele, nos ofícios, nos jeitos de ser e de se expressar. Consequência disso são as diversificações culturais, as tradições e manifestações que nascem e se enraízam em cada povo. Por isso também que cada comunidade possui peculiaridades próprias, aspectos nem sempre observados até mesmo nas vizinhanças.
As diferenças podem ser observadas até mesmo dentro duma mesma região, dependendo da área onde se situa o recorte da população. Na região nordestina, por exemplo, podem ser encontradas feições diferenciadas num mesmo povo. O povo sertanejo, da região interiorana mais árida e seca, possui um jeito próprio de viver que se diferencia muito daqueles nascidos nas áreas litorâneas. Contudo, o orgulho nordestino, o amor sentido pela terra, parece não sofrer qualquer distinção.
O senso de nordestinidade, como termo cunhado para mostrar o orgulho pela terra de nascimento, exemplifica bem o quanto a pessoa se envolve com suas raízes e passa a se conduzir erguendo sua bandeira natal. Tais aspectos são ainda mais observados na região sertaneja, onde os da terra sentem prazer em alardear o orgulho de filhos do sol e da lua, irmãos da catingueira e do bicho do mato, sempre encorajados para o enfrentamento de todas as dificuldades que o meio apresente.
A verdade é que a terra enraíza também o seu filho, e quanto mais amor sentido mais entrelaçamento haverá entre um e outro. Não são poucos os que cantam seus antepassados, suas raízes, sua história. E não fazem isso senão como reconhecimento e declaração de amor ao berço de primeira acolhida. E quanto mais unido ao chão de vivência, mais um só corpo para existir, como aquela força da terra e aquela feição mista de humano e natureza na gente sertaneja, como observado por Euclides da Cunha.
Por isso meu orgulho sertanejo, meu imenso prazer em ter vindo ao mundo no mesmo chão onde corre o calango e o preá e tendo no olhar a grandeza da lua e do sol do sertão. E ter todo matuto como irmão.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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