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quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

A IDEIA DE SERTÃO E O SERTÃO EXISTENTE (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Não será errôneo afirmar que o sertão pode ser visto sob várias acepções. De um lado, aquele caracterizado nos livros de geografia, citado nos opúsculos de história e estampado nas manchetes de jornais. De outro, o sertão romântico, bucólico, fruto da idealização daqueles que o admiram e ali convivem.
Contudo, há ainda o sertão em si mesmo, no seu percurso, na sua vida, para chegar ao que hoje se apresenta. Este certamente está distanciado daquele outro sertão idealizado e caracterizado, pois refletindo apenas a região nas suas veias abertas e nas consequências provocadas pelas inevitáveis mudanças.
Neste último aspecto, o sertão não mais se diferencia muito de outras regiões, de outros lugares com características totalmente diferentes. Praticamente sumiram os costumes e as tradições de seu povo, os modismos apagaram de vez os jeitos matutos e sinceros de convívio, todos os vícios da vida moderna ali parecem redobrados. Sem falar que o número de forasteiros já é maior do que a gente da terra.
O verdadeiro sertão, este mesmo que está sendo totalmente transformado pelas forças das mudanças, é aquele da geografia tão conhecida. Sertão das terras áridas e semiáridas, das estiagens que se prolongam por anos a fio, do bioma envolto pela caatinga, plantas xerófitas como os cactos espinhentos, arbustos de porte médio e galhos retorcidos;  lar de vegetação refletindo os períodos maiores ou menores de estiagens.
Este é o sertão um dia desbravado a partir da beirada do rio, das margens do Velho Chico, na incansável luta daqueles que adentraram a mataria, abriram picadas, levantaram palhoças para o repouso ainda inseguro no inóspito meio. Vindos de outras distâncias, fugindo das revoluções e perseguições, trazendo seu rebanho ou somente o saco de sonhos, os colonizadores das áridas vastidões fincaram na terra desconhecida a bandeira de um povo e sua luta.
Assim nasceu o sertão, a partir dos caminhos abertos beira de rio adentro. Da luta desbravadora dos primeiros habitantes, verdadeiros bandeirantes da sequidão, é que o povoamento foi se alastrando. Uma casinha aqui, uma choupana ali, o pequeno rebanho pastando acolá, e na terra a semente jogada para frutificar quando as chuvaradas permitiam. Daí essa eterna semente refém das imprevisíveis condições climáticas.
As tantas dificuldades surgidas não impediram, contudo, que o sertão e o sertanejo se impusessem perante as forças da natureza e construíssem uma identidade que mais tarde seria reconhecida por todos: homem e terra brotando de uma só raiz, pois um tão dependente do outro, tão reconhecido no outro, que tudo toma uma feição orgulhosa demais por ser dali e ali resistir. Resistência, este poderia ser um apelido para o sertão.
Também o sertão da história, das guerras cangaceiras debaixo do sol, estrada e vereda para o bando de Lampião e a volante cuspindo fogo; percurso da missão de António, o Conselheiro, de cruz sempre erguida aos céus, abrindo caminhos pelo meio do mato, fanatizando beatos, pregando contra as injustiças tantas; púlpito e palanque para Padre Cícero, de um lado pregando a palavra divina e de outro costurando acordos políticos.
Por muito tempo o sertão pareceu imune às transformações do mundo lá fora, das distâncias sulistas. Continuou prevalecendo as características inconfundíveis do sertanejo, tendo por base a profunda religiosidade, o amor extremado pela terra, a eterna luta pela sobrevivência em meio às secas e estiagens, o cultivo das manifestações vindas de outras gerações.
Assim, era um sertão de pequenos agricultores, trabalhadores na terra, vaqueiros, pescadores, catingueiros em busca de caça, parteiras, rezadeiras, gente de ofício de sol e de lua. Eram constantes as vaquejadas, as pega-de-bois, as quermesses, os leilões festivos, os forrós nas salas de reboco, santas missões, inúmeras manifestações simples e tão grandiosas como as pessoas do lugar.
Contudo, o passar do tempo foi trazendo um calendário difícil demais para a vida sertaneja. Não que tivesse de continuar sempre com suas cidadezinhas interioranas, com as características demasiadamente pacatas do seu povo, com aquele cotidiano que parecia o mesmo de sempre. Não. Mas o que foi entrando no sertão sem bater à porta foi espantoso demais.
Verdade que o sertão sempre teve muitos problemas a resolver. Desde o início de tudo que as secas mais prolongadas provocam sofrimentos terríveis, causando fome, sede, esturricando a mataria e provocando a morte de gente e bicho. Tais aspectos, contudo, são conhecidos demais e combatidos na luta e na perseverança. Mas combater o que sorrateiramente chega e se instala de vez, desfazendo tudo, descaracterizando tudo, é muito mais difícil.
E, infelizmente, o sertão e o sertanejo estão perdendo essa batalha. Mas os adversários não são somente pessoas estranhas, o progresso que chega voraz e as transformações que são impostas a todo custo. O próprio sertanejo cuidou de desmatar, destruir grande parte de sua vegetação nativa, devastar as nascentes e os leitos dos rios e riachos, extirpar as matas ciliares, aniquilar o seu meio de sobrevivência. Para se ter uma ideia, quase não há mais bicho no mato, passarinho voando, rio que corra gordo e bonito.
Não bastassem as ações destruidoras do próprio homem da terra, a chegada dos sem-terra na região representou o fechamento do caixão. Onde um sem-terra se assenta não fica em pé nem a catingueira. Sem falar no problema social gerado por aqueles que objetivavam resolver outro problema social. Inegavelmente que houve aumento desenfreado da violência, esfacelamento nas relações sociais, instabilidade e insegurança a cada passagem pelos seus caminhos.
É doloroso, mas necessário dizer, que atualmente o sertão somente continua existindo como tal pelo seu passado. Ora, quase nada do sertão existe mais. As relações familiares são inexistentes, as amizades e os companheirismos de proseados nas calçadas ao entardecer não são mais avistados, as pessoas se tornaram desconhecidas umas das outras. Se no passado quase todo mundo sabia quem era filho de quem, hoje ninguém sabe mais de ninguém.
E agora o pior. O uso de drogas, o tráfico de entorpecentes, os roubos e os furtos cada vez mais violentos, os assassinatos bárbaros, a prostituição em cada canto e em cada idade, o desemprego, o alcoolismo, tudo isso virou normalidade no sertão. Em tais aspectos, muitas vezes supera outras regiões do país.
Sou desse sertão. Sou de Poço Redondo. As cruéis e devastadoras transformações ocorridas impõem uma dolorosa afirmação: Tenho o mais profundo orgulho de ser sertanejo, mas nenhum orgulho de vivenciá-lo como está.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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