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quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

A MOCINHA DO CIRCO (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Folheando o diário dos tempos idos, eis que me deparo com uma página que me traz uma doce e triste recordação. Doce porque prazeroso ter vivido uma experiência tão encantadora; triste por que... Depois eu conto.
De repente o velho carro de som começou a circular pelas ruas da cidade anunciando a chegada do circo. Logo se imaginaria que um carro tão velho assim, caindo aos pedaços e com som difícil de ser ouvido a cinquenta metros, refletia bem as características da companhia mambembe. E não foi diferente. Mas o locutor anunciava:
“Atenção, atenção, já se encontra nessa linda cidade o maravilhoso Circo Cigano, com as mais belas atrações da face da terra. Palhaços, domadores, rumbeiras, cuspidores de fogo, atiradores de facas, além de outras grandes atrações. E exclusivamente para vocês a mulher barbada, o macaco que fala e o sensacional homem sem cabeça, além da atração maior: a mulher invisível”.
A novidade encantava não só a criançada como todos os habitantes do lugarejo. Povoação de fim de mundo, longe de tudo, sem nada que permitisse fugir do cotidiano de sol, calor, lua imensa, com as mesmas caras de esquina a esquina, tudo numa mesmice danada, a chegada de um circo era realmente uma novidade maravilhosa.
As janelas se abriam, as portas eram escancaradas, pessoas acorriam por todos os lugares para ouvir o carro passar anunciando a chegada do maior espetáculo da terra. Ora, o locutor também afirmava assim. E dizia ainda que dali a dois dias, após a arena estar completamente armada, a estreia teria preços promocionais.
Meninote ainda, também encantado com a atração, não consegui esperar os dois dias para conhecer a armação do grandioso espetáculo. Seria doloroso esperar que já estivesse completamente armado e pronto para estrear. Na manhã seguinte eu já estava nos arredores das barracas, lonas e outras estruturas. E os olhos curiosos passearam ao redor vasculhando aquilo que seria o Circo Cigano.
Contudo, o que mais me despertou a atenção não foi nem a jaula vazia nem a pouca quantidade de equipamentos que ergueriam e fariam funcionar o majestoso circo, como afirmado pelo entusiasta (e mentiroso) locutor, mas sim uma bela mocinha saindo de uma tenda armada nos arredores. E logo pensei se aquela era uma das dançarinas então nem precisava de outras atrações.
Bonita mesmo, a danadinha. Se eu não a tivesse encontrado saindo daquela tenda circense logo imaginaria ser uma bela visitante, alguém que havia chegado ao lugarejo para alegrar os olhos da rapaziada. De pele clara, cabelo comprido, esbelta, um rosto tão singelo que mais parecia de bonequinha russa. Foi paixão repentina. Mas coitado de mim, um molecote querendo demais.
Após o encantamento, e com uma vontade danada de me aproximar um pouco mais e tentar ouvir qualquer palavra de sua boca, decidi retornar e providenciar aquilo que me pareceu ser o mais inteligente a fazer. Tomei banho, me perfumei, coloquei roupa nova, vesti calça comprida, calcei sapato, passei brilhantina no cabelo e cuidadosamente penteei. Tudo para parecer rapazinho.
Retornei assim, todo arrumado e metido, mas principalmente tendo o cuidado de levar um presentinho para a mocinha do circo. Era apenas um pequeno diadema que, por força da paixão, cuidadosamente afanei dentre os objetos de enfeites de minha irmã. Rodeando a tenda, não demorou muito e ela surgiu com balde à mão, seguindo em direção a uma caixa d’água logo adiante.
Foi o momento exato da aproximação. Corri e pedi para segurar a vasilha, dizendo que mãos tão belas não podiam fazer tanto esforço. Contentamento maior, ela aceitou; e mais felicidade ainda, sorriu e me convidou a assisti-la na estreia. E quando ofereci o diadema recebi um abraço. Gelei, estremeci, já não sabia mais o que fazer. Sonhando acordado, nem sei como retornei.
Voltei lá por duas vezes no dia seguinte. Esperei, esperei e nada de encontrá-la. Deixei o perfume para entregá-la depois, após a estreia do espetáculo. E no dia marcado, assim que a bilheteria foi aberta, fui o primeiro a adquirir o ingresso. Também entrei antes que todo mundo, numa ânsia desenfreada para vê-la aparecer no picadeiro.
Assim que o espetáculo começou, não demorou muito e foi anunciada a mais linda dançarina do mundo. E era mesmo, pois era ela, coberta em pouquíssima roupa para a época. Assim que entrou, e antes mesmo de cumprimentar a plateia, jogou um beijo em minha direção. Foi a glória. Coração quis pular, fiquei totalmente entorpecido. Talvez mais tarde pudesse beijá-la na face, pensei.
Foi a mais aplaudida até o momento que o tão esperado atirador de facas foi anunciado. Ao entrar, o homem pediu desculpas pela ausência de sua assistente que havia repentinamente adoecido, mas a apresentação de seu número estava garantida com uma jovem substituta. E esta não era outra senão a minha bela dançarina.
Ainda vestida com as minúsculas roupas, o atirador de facas perdeu a concentração devida e, pela primeira vez, errou o alvo. Atirou a faca e esta desnorteou, acertando bem no coração da mocinha. A plateia sustou atônita. O mundo parou. E eu gritei.
A faca acertou bem no coração da mocinha.

  
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Brar Braren disse...

Não, isso não pode ser verdade...Essa história mats qualquer um do coração. Ninguém inventaria uma história dessas...deve ter sido verdade. Mas se foi...você não deveria ter escrito...uma coisa dessas não se escreve...Diz que foi um truque para te matar do susto, vai. Que no final ela foi aplaudida ao tirar a faca do peito.