SER SERTÃO: DA ARTE DE NASCER IMPRESTÁVEL – III
Rangel Alves da Costa*
E o velho continuou com a leitura da biografia, na parte que cuidava do nascimento e adolescência do imprestável ser sertanejo:
"Na idade de 6 meses foi levado à pia batismal, recebendo o nome de...
Deparou novo campo de abusões populares. Pretendem uns que a água-benta passava-lhe pela cabeça sem molhá-la; que o óleo santo volatizava-se ao tocar-lhe o corpo e ascendia ao teto em espirais. Muitos, enfim, asseveram que no ato do batismo a criança tinha os lábios crispados por aquele riso sarcástico que Ninon de Leuclos observou nos lábios do ateu infante que mais tarde distinguiu Voltaire. O pequeno (...) nunca engatinhou, principiou arrastando-se com a barriga pelo chão à maneira dos répteis.
Seu choro era também objeto de espanto e curiosidade: principiava com o silvar da serpente e descia gradualmente até ao sarrido do urso-marinho. Quando mamava afagava a mãe e mordia-lhe o peito. Anos mais tarde ele tinha também de arrastar-se diante dos partidos, afagar os chefes e depois morder-lhes a mão protetora que lhe dera amparo",
Quando o velho parou a leitura por um instante, no intuito de tomar um gole de água e acender o cachimbo de fumo cheiroso – servia também pra espantar maus espíritos, dizia ele -, um rapazinho que estava ouvindo tudo desde o começo perguntou:
- Mas meu senhor, tem certeza de que essa pessoa que o tal de Catunda relata aí era realmente gente, pessoa de carne e osso como a gente? Fico pensando se não tá mais pra bicho do que pra humano e qual a razão de já nascer com esse instinto ruim, e aí é que vem outra pergunta: se pequeno já é assim, o que não será quando já tiver homem feito?
Dando largas baforadas, o velho respondeu:
- Já diz o ditado que pau que nasce torto cresce torto, envelhece torto e morre torto. É que tem gente que não tem jeito mesmo, pois nasce como coisa ruim e com o tempo, ao invés de mudar, o que faz é aprimorar seu jeito de fazer maldades. Esse personagem é um, mas com certeza conhecemos muito mais pessoas que são desse mesmo jeitinho. Aliás..., mas deixa pra lá e vamos prosseguir:
"Com a idade de 12 anos completos, entrou na escoa o maldito (...). A esse tempo, já era ele o terror dos outros meninos, os quais evitavam-lhe a companhia. (...) sua natureza intrigante e rixosa principiava a desenvolver-se. Com os hábitos de espadachim, contraídos nessa educação desprezada, cresciam os instintos de perversidade nativa.
Um dia reuniu-se em capítulo a família do maldito para deliberar sobre o seu destino ulterior. Opinaram uns que ele se dedicasse a um ofício mecânico; que aprendesse o ofício de pedreiro ou carpina; queriam outros que ele se dedicasse ao comércio; estes, a ser vaqueiro; aquele, ao trabalho de foice e machado. Mas todas essas opiniões foram sucessivamente combatidas.
Queria-se uma profissão que pudesse corrigir, em parte ao menos, os vícios temporais que começavam a depravar aquela alma de 18 anos. Um velho tio disse: É melhor sentar-lhe praça; talvez que a chibata e as agruras do serviço militar possam atenuar os vícios de seu caráter e tornar menos perigosas essas inclinações viciosas. Este parecer foi geralmente aplaudido.
Por desgraça do município e seus habitantes, aquela resolução não foi levada a efeito. Os pais do maldito tomaram o acordo de dedica-lo ao sacerdócio e à igreja, esperando que as doutrinas evangélicas lhe tocassem a alma, operassem uma transformação radical no seu espírito refratário aos sentimentos de humanidade e religião". Contudo, foi pior, acrescentou o velho.
E disse mais: A igreja, por falsidade do maldito que deveria lhe resguardar e respeitar, viu-se, mais tarde, e onde quer que ele estivesse, como um palanque para a obtenção de poderes terrenos. A hóstia virou moeda; a fé, uma submissão política; a própria política tornou-se um jogo nefasto e promíscuo de interesses, com o poder sendo abençoado pela corrupção moral; e aqueles que, por via da safadeza ou da ignorância absoluta (coisa que é muito difícil hoje em dia), tornaram-se cúmplice da ascensão do espírito das trevas em meio aos homens de bem. Estes, na pior companhia, mas muitas vezes porque assim querem estar, caminharão por caminhos tortuosos e de sofrimentos até encontrarem o abismo.
"Mas meu velho, essa história toda que o senhor acabou de contar não tem tudo a ver com esse homem que está aí, que nesse momento deve estar na prefeitura, que largou a batina para se tornar prefeito desse lugar, do nosso município, não?", perguntou um rapaz.
"Você é livre para pensar o que bem entender meu jovem. Eu tenho minha convicção definida quanto a isso, e por isso mesmo me benzo todas as vezes que ele passa. Mas qualquer identificação um com o outro poderá ter sido mera coincidência, ou não...".
Tendo dito isto, em silêncio o velho ficou e assim permaneceu, charutando o seu fumo e a sua cheirosa fumaça. Notava-se nele total destemor pelo que havia contado. Todos os outros presentes pareciam perplexos e atemorizados.
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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