NOITE
Rangel Alves da Costa*
Noite... Será que a noite possui somente como significado aquilo que consta dos livros, dos dicionários, conceitualmente explicada como se não guardasse nenhum mistério e encanto em si? Noite vazia essa noite: espaço de tempo em que o sol está abaixo do horizonte; o período compreendido entre o nascer e o por do sol; a fase após o entardecer e que se prolonga até a madrugada; o período da escuridão compreendido entre o crepúsculo e o alvorecer; escuridão, trevas, obscuridade que reina durante esse tempo.
A noite não se contenta em ser apenas um período de escuridão, quando a maioria das pessoas recolhe-se às suas residências e repousa para descansar da fadiga do dia e se preparar para a labuta do dia seguinte. A noite não quer ser vista apenas com uma lua no céu, portas e janelas fechadas, ruas vazias, luzes acesas ali e acolá, postes melancólicos, sonos, sonhos e pesadelos. A noite quer ser vista pelo que sua luz própria pode mostrar. E quanto instigante é a luz da noite...
Nessa luz da noite, onde somente alguns conseguem enxergar, é que estão os mitos, as lendas, os mistérios, as paixões avassaladoras, os amores que se permitem, os amores proibidos, as traições, as espreitas, os medos, os olhos que buscam, a fome de sexo, a sede de sangue, o poema cheirando a limão, portas e janelas entreabertas, corpos incendiários, travesseiros molhados, camas desfeitas, macumba na encruzilhada, chuva que cai, olhos de lágrimas, o vento que sopra anunciando tempestades, a luz que se apaga, a criança que é feita, a criança que chora, os olhos que fecham, a esperança do dia seguinte, a morte...
Dizem que a noite possui muito mais vida que o dia, pois o que se faz na claridade é quase somente aquilo que se vê, enquanto que na escuridão quanto mais se queira enxergar o que acontece ao redor e adiante mais os olhos poderão imaginar que veem aquilo que jamais imaginou. E é tanto e tudo acontecendo que aquilo que se vê ou se imagina é apenas uma pequena parte do que se esconde bem ao lado. A cinco metros e você nem imagina que está sendo seguido, vigiado, olhado por olhos que você nem imagina a luz e o instinto que tem.
Dizem que a noite, por ter certa inimizade com o dia, permite que tudo aconteça no seu reinado para que tudo se torne como que esquecido na claridade. Daí que ninguém diz que pulou o muro, a janela ou sorrateiramente entrou pela porta entreaberta; ninguém diz que se escondeu embaixo da cama ou no armário quando o marido da amante chegou; ninguém diz verdadeiramente onde estava quando chega em casa já com o dia clareando; ninguém diz que quase não dorme porque a insônia do amor só permitia chorar e recordar.
Dizem que a noite possui o dom do encantamento, do desnorteamento dos sentidos e da mente e da transformação da realidade em ilusões, ensurdecendo ouvidos e cegando olhos ávidos para bisbilhotar. Já imaginaram a constância do barulho se espalhando pelos corredores, pelas ruas e pelos ares, vindos dos murmúrios, dos gemidos, dos gritos de amor e de prazer? Já imaginaram se no dia seguinte todos contassem o que fizeram na noite passada? Já imaginaram se todos os vestígios deixados pela pressa e pelo medo fossem descobertos na manhã seguinte? A noite permite que façam e desfaçam e depois encobre tudo. A noite é safada. Por isso mesmo é que a noite é misteriosa e encantadora.
Dizem que nas noites onde não se enxerga praticamente nada, as estradas, os matos, as florestas, os descampados, as beiras de rios e os escondidos ficam povoados de seres assustadores. Assim que o sol se esconde de vez, começam a se preparar para atacar mais tarde as mulheres que traem os maridos, os padres que fornicam com as beatas, os filhos que batem nos pais e as pessoas que só vivem mentindo e fazendo o mal. Mas dizem que é tanta gente a ser atacada ou amedrontada, que sempre ficam indecisos e quando partem o dia já começa a alvorecer, e tudo fica para o dia seguinte, sempre.
Mas é na noite que se ouve ao longe o som do piano e a mente fica imaginando quais os motivos que levaram aquelas mãos a tocar a música que palpita o coração; é nesse instante onde a pena mais busca o papel para rabiscar versos de amor e de dor; é embaixo da lua do momento, mirando as estrelas e viajando sem destino que o apaixonado se contenta em sofrer porque o cenário não lhe permite alegria; mas é embaixo dessa mesma lua que o casal de apaixonados troca juras de amor eterno e já querem outra lua, que é a lua de mel.
Nesse instante que escrevo é noite porque é escuridão. Veio-me uma dúvida e preciso de uma luz: como será a noite do cego?
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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