SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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sábado, 3 de abril de 2010

O RACISMO DO SOL COM A NOITE (Crônica)

O RACISMO DO SOL COM A NOITE

Rangel Alves da Costa*


Até hoje se comenta o qüiproquó que deu porque o sol chamou a noite de neguinha. Tal fato ganhou tamanha proporção que teve de haver intervenção superior para que a natureza astral não se transformasse num verdadeiro campo de batalha entre os solidários da noite e os amigos do sol.
Pode parecer estranho, mas tudo começou num dia nublado, meio chuvoso, quando o céu nem estava claro nem escureceu de vez. Como sempre acontece nesses dias, Marina estava na sua janela observando aquela natureza indecisa, aquela paisagem que mais parecia uma tela vazia nebulosa esperando qualquer cor alegre. A mocinha era poeta e aquele era o momento ideal para buscar inspiração e depois rabiscar um poema triste.
A jovem olhou para o alto e pôde enxergar feixes de luz querendo abrir caminho entre as nuvens e passar, mas não tinha jeito. Quando os raios despontavam, nuvens negras tomavam a frente e impediam a passagem. De repente, quem bruscamente surgiu foi o sol, com aspecto enraivecido e avisando que ninguém impediria que fizesse o resto do seu trabalho no dia. Mas as nuvens encobriram novamente o sol e tudo voltou a ficar meio escurecido.
Não era possível ter certeza, mas Marina jura que lá pra cima estava o maior quebra pau, a maior confusão, pois o firmamento estremecia e pedaços de nuvens espalhavam-se por todos os lados. Até choveu no momento e dizem que eram as nuvens chorando. Pingos pesados, de dor.
Quando o sol se sentiu desprestigiado, diminuído vergonhosamente na sua fama de astro rei, acrescido ao fato de estar sendo abusivamente impedido de cumprir seu papel naquele resto de dia, não deixou barato. E mesmo que a lua, as estrelas, os cometas e outros astros implorassem para que se acalmasse, ele se revoltou contra todos, exigiu respeito e disse que se tinha algum culpado por aquela situação toda não era ele, mas sim as nuvens que fizeram a besteira de obstruir a passagem de seus raios e a dele próprio, quando já estava pronto para ensolarar e encher novamente de alegria a terra.
E disse mais: "Eu sei porque elas fizeram isso, e outra coisa não foi senão querer impor que a noite aparecesse mais cedo". A noite, que vinha chegando no momento, não gostou nada do que ouviu e passou na cara do sol: "Vê se me respeita seu metido, só porque dizem que é importante se acha no direito de fazer acusações com quem não tem nada a ver com isso. Pois agora quem tomou as dores sou eu e duvido que me empate de fazer anoitecer sobre a terra agora mesmo. Quer ver?". E o sol, que já estava envermelhecendo de raiva, retrucou: "Só se passar por cima do meu cadáver, sua neguinha". O mundo quase desaba nesse instante.
Chorando copiosamente, a todo instante fazendo gestos que iria desmaiar, imediatamente a noite afirmou que aquilo não ficaria assim de jeito nenhum, porque todos os presentes ouviram e teriam que testemunhar a favor dela e que iria processar o sol pela prática do crime de preconceito racial. O sol não deu a mínima para o que ela disse, e como já estava na hora de ir embora mesmo, saiu todo imponente, sem se despedir de ninguém.
No outro dia, totalmente nublado, o acusado de racismo não apareceu um só instante, e os astros fofoqueiros passaram a afirmar, com absoluta certeza, que ele só não apareceu porque passou o dia preso pelo que havia dito. Chamar a noite de neguinha foi ultrapassar os limites, foi praticar um crime inafiançável, hediondo. Até porque a noite não é neguinha, quando muito é negra, e com orgulho.
Verdade é que tal fato chegou aos tribunais do céu, estando ainda pendente de julgamento. Contudo, o mais interessante nisso tudo é que até hoje amigos de um brigam com amigos do outro. Assim, uns dizem que na verdade foi o sol que havia sido vítima de preconceito porque as nuvens negras e a noite se juntaram com o único objetivo de menosprezar sua cor incandescente. Já os defensores da noite afirmam que não era a primeira vez que aquilo acontecia não, pois todas as vezes que o sol ia embora virava o rosto com desprezo pra nem querer sentir a presença dela. E isso era desrespeito, preconceito, racismo.
A única certeza é que até hoje o sol e a noite não se falam mais, são de mal, inimigos de fogo a sangue. E é por isso mesmo que procuram nunca se encontrar. Quando a noite vem chegando é sinal de que o sol está indo embora.



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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