SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 19 de abril de 2010

SER SERTÃO: DA ARTE DE NASCER – II

SER SERTÃO: DA ARTE DE NASCER – II

Rangel Alves da Costa*


As mulheres, já chegando nos dias de dar à luz, com a barriga imensa, os pés inchados e todos os problemas próprios das que estão em vésperas de parir, mesmo assim seguiam de rodilha e pote na cabeça rumo ao tanque ou barragem; partiam com a trouxa de roupa suja em direção ao riachinho; com braços doídos e mãos calejadas, ainda assim iam apanhar lenha nas redondezas.
Com todo esse sacrifício, em plena exaustão, quando começavam a surgir os primeiros sintomas que o momento do filho nascer havia chegado, lá estavam elas portentosas, fortes como bichos do mato, sofrendo feito mães. O alívio de tudo, o bálsamo suarento, sempre vinha pelas mãos experientes e donas de muitas vidas, que jamais desprezaram suas sinas: as negras velhas parteiras.
As parteiras sertanejas, essas obstetras formadas nas mais prementes necessidades, ajudaram a nascer grande parte da raiz familiar que se tem hoje. Pessoas pobres, humildes, de muitos afazeres nas lavagens de roupas para os que podiam pagar; fateiras de beira de riacho, criadas de companhia, empregadas domésticas, ainda a velha sinhá, elas, com suas mãos rudes, zelosamente cuidaram de fazer aparecer para o mundo um verdadeiro exército de infantes sertanejos.
Doce e difícil, muitas vezes desvalorizado e não reconhecido, o ofício das parteiras. Chamadas a qualquer instante do dia e principalmente no meio da noite, em passos descompassados pela pressa percorriam mesmo distantes caminhos para socorrer aquelas que esvaíam-se nas dores que antecedem o parto. Atenciosas, ágeis como na feitura de ofício divino, num piscar de olhos já estavam botando água para amornar, arrumando bacias, ajeitando panos limpos e colocando uma tesoura amolada nas proximidades. O corte do cordão umbilical deve ser visto como coisa séria, um ritual sagrado, pois é neste momento que o filho é separado do corpo da mãe, quando realmente é colocado no mundo, num destino a ser cumprido.
Essas senhoras agrestes, de mãos duras e rudes, durante muito tempo foram uma espécie de segunda mãe para muita gente. Esse eu vi nascer, esse eu tenho como verdadeiro filho, era o que mais se ouvia sertão adentro. Como agradecimento, muitas ensinavam aos filhos que, sob a pena do pecado, quando encontrassem uma tal senhora tinham que dar a benção. Naqueles tempos de antanho nenhuma autoridade, exceto o coronel, era mais convidada do que as parteiras para batizar crianças.
As crianças nascidas assim, de forma rudimentar e geralmente com pouca higiene, nem por isso deixaram de crescer normais, robustas, sapecas e viciadas em comer barro. Barrigudinhas muitas vezes, ficavam quase nuas a remexer pelos cantos da casa ou no quintal, atirando pedras nas galinhas. Crescidinhos, os meninos não faziam outra coisa senão caçar passarinhos, construir e armar ara puçás pelos pastos, tomar banho de riacho, brincar de pega-de-boi, levantar cercadinhos de madeira dizendo que era fazenda e encher de pontas de gado.
Comprar e vender as pontas não era nada fácil, pois a moeda corrente era o papel das carteiras de cigarro. Nota de cigarro Clássico valia tanto, se o cigarro fosse Iolanda o valor seria outro tanto, e sendo Astória teria ainda mais valor, e assim por diante. Depois vinham as brincadeiras com bola de gude, o jogo de bola, tudo que fizesse a alegria da meninada. Tempos...
As piruetas do tempo fazem com que o crescimento do lugar vá mudando também a mentalidade das pessoas. Criança nascer em casa, amparada por parteira, só se for onde Judas perdeu as botas, lá pelos cafundós ou em casos de reconhecida pobreza. Tornou-se um risco de morte, como dizem e querem os sabichões; é "démondé", fora de moda, como diz a ilustríssima senhora metida a besta. Assim, como não é difícil encontrar uma maternidade na região, por perto, nos dias que antecedem os primeiros sinais a mulher é logo transportada para um confortável leito, de onde só sai com a criancinha vestida num conjuntinho azul ou rosa. O nome da criança ainda está num impasse, coisa ainda a ser decidida, mas a verdade é que não pode deixar de ser nome "ingrês" ou de personagem de novela da "grobo". Certa feita um pai queria porque queria botar o nome do filho de Zeca Diabo, e Júnior ainda mais: Zeca Diabo Júnior. Ô coisa grande em tudo é esse sertão...
Mas quem quiser pense que matuto é besta. Pelo contrário, pois ninguém é mais estrategista do que o sertanejo. Na verdade, existem muitos que só articulam, só pensam bem quando é pra tirar proveito, mas não é um proveitinho qualquer não. Assim, quando chamam políticos para serem padrinhos dos seus filhos sempre há uma intençãozinha por trás dessa amizade toda, e isso não significa outra coisa senão uma mordomia, uma festa, encher o guarda-roupa, pensar que tem proteção e ainda abrir o verbo, na boca muitas vezes desdentada: "Muito mais do que canidato, meu cumpade é a salvação do sertão". E nem vai votar no compadre, pois já tem compromisso com outro, às escondidas. Mas é assim mesmo...
Ocorre que nos meses que antecedem os pleitos eleitorais, com candidatos a prefeito e a vereador, cada um destes tira suas carapuças e suas escamas de cobra ruim e passa a viver bajulando o eleitor, catando votos a qualquer custo, fazendo os mais mirabolantes favores, prometendo o que não pode dar de jeito nenhum, enfim, submetendo-se, e todos sabem o porquê, às mais absurdas exigências dos eleitores. Por isso mesmo é que há o troco mais tarde, quando são eleitos, pois não há coisa mais deplorável do que um eleitor, só porque tem um voto e obrigatoriamente vota, tornar-se pidão, esmoler contumaz, facadista pelo resto da vida, mas principalmente em época de eleição. E tudo isso o velho sabia e dizia...


continua...



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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