SER SERTÃO: DA ARTE DE SOBREVIVER – II
Rangel Alves da Costa*
Com a terra molhada, com o braço forte do homem, com o encorajamento que Deus dá sempre, com o aproveitamento das sementes guardadas de outra safra em tonéis ou cumbucos, tudo vai se tornando expectativa de fartura no sertão. Se não for fartura, já que nada na vida é demais naqueles limites, ao menos o homem vai poder ganhar um dinheirinho vendendo o que for colhido a mais.
Dependendo do tipo de solo, tudo que for plantado nasce, e ao nascer e for possível uma boa colheita, por muito tempo o sertanejo vai livrar-se da fome e da miséria, da mais degradante situação humana de ver os filhos chorando com fome e não ter nada nem um resto de qualquer coisa para dar aos desnutridos e magricelas, porém todos barrigudinhos do barro das paredes de taipa que comem.
Assim, além de espantar por um tempo a cara feia e assustadora da fome, vai também deixar de depender das esmolas eleitoreiras dos governantes de plantão. Estes sim, de forma vergonhosa imploram aos céus todos os dias para que as nuvens de chuva sigam por caminhos bem distantes, para que a barra não anuncie inverno bom, para que não chova no sertão de jeito nenhum. São as aves agourentas que estão por todos os lugares, e na aridez sertaneja não passeiam pelos céus, mas ficam na terra maldizendo a natureza. Não poderia ser diferente: a seca que destrói alimenta os vermes da política.
Há quem diga que o sertão está ficando cada vez mais pobre. Chega o progresso, suas transformações inovadoras, e nem com isto o sertão vê-se modificado para melhor. Foi este progresso que desmatou; que trouxe as farmácias e os remédios de pouca cura, quase que deixando no esquecimento as plantas medicinais de cada quintal; também são raros os quintais imensos de antigamente. Foi o progresso que trouxe a sanha da exploração; a insaciável fome do atravessador; o esperto endinheirado que tudo fez e faz para tirar do sertanejo seu pedacinho de terra e suas vaquinhas magras, a preço vergonhoso. Foi este mesmo progresso que trouxe os bancos com seus empréstimos ilusórios, deixando sem dormir todos aqueles que tinham sono seguro. Quanto mais pagam mais devem; quando tem as dívidas perdoadas já endoidaram, enlouqueceram ou sumiram pelo mundo para morrer adiante.
Verdade é que o sertanejo sempre gostou de ter um pedacinho de terra com algumas criações – quase sempre pouquinhas, é verdade -, um tantinho só, mas que se tornam como tudo na vida, desde a galinha pedrês até a vaquinha malhada. Tanto gosta dos seus bichos que prefere passar fome a matar um capão, um porco ou um bode. Vende vivo, quem quiser que mate, mas ele não. Prefere não se manchar com o sangue daquilo que só se desfaz porque é o jeito. Com o dinheiro da venda é que vai comprar o alimento – a farinha, o feijão, o fubá, o açúcar, o café, a lata de óleo e dois quilos de carne com osso, que tem de dar pra semana inteira – e, se vintém ainda sobrar, o que é muito difícil, então é que vai comprar o fumo de rolo ou já prontinho ou a carteira de cigarro e a garrafa de pinga. Muitos preferem levar da branquinha, da pura, do engenho mesmo, pois a cachaça ficará saborosa ao ser misturada em infusão com as mais diversas cascas de pau. O que não pode esquecer, de jeito nenhum, é da "bala doce" dos meninos.
Houve um tempo em que não era difícil ter um pequeno terreno com algum tipo de criação, principalmente gado, Poucas reses, magras e dando mais trabalho que lucro, mas valia a pena. Não coisa mais gratificante para o sertanejo do que logo cedinho, na manhã ainda escurecida, levantar e daí a pouco ouvir o gado berrando, as aves já traquinando e outros animais fuçando aqui e ali.
Quando tem um terreninho e não mora no próprio cercado, na casa de taipa bonita, de barro batido do próprio terreno tendente ao massapé, todos os dias o sertanejo se desloca até sua propriedade. Ao entardecer, assim que o sol começa a esfriar mais um pouquinho, ele vai chiqueirar as vacas de leite para o cercadinho que diz que é curral. Pela manhã, assim que o galo canta, se alevanta e volta para fazer a ordenha, tirar o leite, beber numa caneca de alumínio o leite quentinho saído do peito da vaca. Muitas vezes despeja o líquido num prato com farinha e ali mesmo come. A sustança está garantida até mais tarde, quando vai comer cuscuz com leite ao lado da família.
Quando o gado é ordenhado logo é retirado do curral para se juntar com os outros animais, se houver. A alimentação destes, quase sempre escassa, se resume ao que tiver no momento e para o dia inteiro. Se tiver palma, ela é pinicada num cesto e colocada numa sombra, embaixo de pé de pau ou ao lado da casinha. Quando nem palma existe, nem farelo ou outra ração qualquer, o jeito mesmo é esperar que os animais espalhem-se pelo pasto e vão buscando qualquer tipo de planta rasteira que ainda possa existir.
Quando se chega a uma situação dessas é porque ali também não tem água para matar a sede dos bichos. Se muito pedir, se lamentar e se submeter a qualquer político que esteja no poder no momento, pode até conseguir uma carrada de água de carro-pipa. Se isto não for possível, o único jeito é rezar para chover logo ou ter que amargar ver aquele pouco que tem acabado, destruído pela raiz, pois ou venderá por qualquer dinheiro o miúdo criatório ou logo verá urubus rondando as figuras ossudas e mortas dos animais.
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário