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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 26 de abril de 2010

SER SERTÃO: DA ARTE DE SOBREVIVER – III

SER SERTÃO: DA ARTE DE SOBREVIVER – III

Rangel Alves da Costa*


Mal costumeiro visitante, com suas faces de miséria e angústia; sua sede esvaziando cacimbas, tanques e açudes; passos tão medonhos que esturricam as plantas e racham s caminhos; emissário apavorante que vem sinalizando um tempo de pavor e desespero, tristeza e desolação. É a seca que vem chegando...
Por mais incrível que possa parecer, as secas são os fenômenos mais previsíveis e ao mesmo tempo mais devastadores que existem no sertão. Sendo fenômeno natural, constantemente assolando a região, coisa anunciada e que o homem na sua modéstia perante as forças divinas não consegue impedir, torna-se o divisor ainda mais acentuado entre a riqueza e a pobreza, a fartura e o não ter nada, o tanto faz e o ter de suportar calado, nas pessoas e nos animais. E por um desses mistérios da criação divina, são os bichos os que mais sofrem, mais padecem na sua dor quase que silenciosa, pois, diferentemente do homem – este ao menos abre a boca pra desconjurar -, não podem falar que estão com sede ou fome. Agonizam sim, calados, quietinhos, com algo parecido com lágrima que escorre pelos olhos, até as forças não agüentarem mais o leve peso do próprio corpo, quando desabam para morrer em qualquer descampado, mirradinhos de dá dó. E êta festa pros outros bichos que vão se achegando...
Ao ser anunciado que esta ou aquela estiagem será das mais prolongada, os sertanejos mais precavidos logo tomam uma série de providências que, na maioria das vezes, pouca serventia terá. Muitos vendem o pequeno rebanho que resta para não ter maiores prejuízos mais tarde; só que no decorrer da desolação o dinheirinho adquirido também vai embora, acaba mais cedo do que o desejado. Outros arrumam as malas e vão, com toda a família, para terras distantes, num sonho que ao invés de ser construído é sempre destruído. A maioria, pela própria experiência, simplesmente espera o que vai acontecer, se mais ou menos desgraça, se maior ou menor o sofrimento do que o imposto pela seca anterior, e que parece que foi ontem.
Logo os sertanejos estarão ouvindo que os governantes estão tomando sérias providências, medidas eficazes e duradouras para diminuir os efeitos das estiagens e então resolver, de uma vez por todas, os históricos problemas. Dizem que implementarão programas de convívio do homem com a seca; que programas de irrigação para todo o semiárido já estão sendo elaborados e logo começarão os primeiros trabalhos; que serão construídas cisternas onde quer que as famílias sertanejas estejam; enfim, que tudo está sendo planejado por técnicos altamente especializados para que todo o sertão se torne num verdadeiro oásis verdejante.
No discurso dos governantes, há uma ênfase toda especial na afirmação de que não é mais possível, e até vergonhoso, que o sertanejo venha tendo ao longo dos anos apenas soluções paliativas, somente direcionadas para sanar situações emergenciais. O que se tem de fazer – bradam nos parlamentos e nos palanques – é resolver para sempre esse grave problema. E citam que este é o compromisso maior dos seus governos, pois ficam indignados quando a imprensa noticia a mesma coisa de sempre, ou seja, a mesma seca que chegou devastando tudo, mudando somente o frescor da tinta e a data. Quando ouvem essa ladainha já conhecida por seus bisavós e antepassados destes, essa mesma conversa pra boi dormir, vergonhosamente requentada desde que o sertão é sertão, os sertanejos esquecem um pouco as suas agruras e começam a gracejar, ou "mangar", como eles mesmo dizem no linguajar costumeiro. Que cara de cedro podre a desses governantes, dizem nas rodas de fim de tarde.
Como é do conhecimento de todos, promessa e conversê de político e nada é a mesma coisa. Promessa nem se fala. Certa vez teve um que disse que já havia mandado fazer um estudo no exterior, com projeto já concluído e tudo mais, com o objetivo de abrir novos e volumosos rios ao lado de cada cidade sertaneja. Só parou com essa conversa quando começaram a chamá-lo de Deus pra cima e pra baixo. Coitado, depois teve que ir inventar outra em outro lugar, e assim ia ganhando seus votinhos e se elegendo. Deixando um pouco de lado essas safadezas, verdade é que anos a fio, parecendo uma eternidade de sofrimentos, as secas vêm e retornam, vão embora, deixam seus rastros e tudo no mesmo cenário e fazendo vítimas do mesmo sangue. O que se vê de alento são as obras emergenciais, o assistencialismo barato e desavergonhado, o império da politicagem com o sofrimento alheio. E tudo vai permanecendo como ontem e hoje, como sempre será...
Nem todos, é verdade, mas a maioria dos sertanejos tem vergonha na cara. Dói aceitar as esmolas oficiais, aquele pacotinho com arroz de última qualidade, sujo e todo quebrado, lata de óleo comestível, farinha de milho que faz um cuscuz vergonhoso, farinha imprestável, borra de café, açúcar que nunca viu refino, um pedaço de mortadela ou de jabá (hoje em dia tá muito caro) e feijão que nunca cozinha. Em certas localidades há também a distribuição de leite para as famílias que comprovarem ter crianças pequenas em suas casas. Muitas vezes, as crianças são a própria salvação da "lavoura", pois tais programas de distribuição de alimentos somente persistem porque pressupõe-se que já seria demais deixar os pequeninos sem alimentação alguma. Mas mesmo assim ainda deixam, pois as cestas básicas costumam parar nas mãos de famílias que conseguiriam sobreviver sem elas.
Pais existem que só não roubam para alimentar os filhos porque têm vergonha disso e sabem das conseqüências desastrosas que tal fato pode gerar. Mas nos momentos que só ouvem as lamentações dos menores e se sentem impotentes, sem poder fazer nada porque já imploraram o que tinham de implorar, a vontade mesmo é de fazer besteiras, de sair por aí saqueando, de dar um tapa na cara do primeiro governante que encontrar, de desacreditar em Deus. É, às vezes, até Deus torna-se culpado por permitir que aquela miséria toda ameace de morte os seus pequeninos e que não pediram para nascer, como costumam dizer...


continua...



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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