SER SERTÃO: DA ARTE DE SOBREVIVER – I
Rangel Alves da Costa*
Uma das coisas que o velho mais gostava de fazer era falar sobre as proezas do homem da terra, acerca das façanhas do sertanejo para sobreviver. Ele mesmo achava-se um exemplo vivo de todas as lutas, de todos os sofrimentos e dificuldades para continuar tendo seu espaço e seu cantinho abaixo do sol. Mais difícil ainda era ter que justificar com "o homem lá em cima" a necessidade de continuar sobrevivendo. Por isso mesmo, achava belíssima a frase de Euclides da Cunha, onde se lê que o sertanejo é antes de tudo um forte.
Nesse passo, é que demonstrava ser um crítico ferrenho das gerações passivas, preguiçosas, entregues somente a vícios mundanos, como se a vida tivesse que ser temperada com os ingredientes do que não presta. Era quando dizia que muitos só pensam no bom e no melhor, e não sabem nem a diferença entre a chuva e o sol.
Mostrando suas mãos calejadas, pegava o cachimbo, ajeitava o fumo fresquinho com o dedo, acendia a labareda do primeiro fumaçar e começava a falar incessantemente, como necessitasse dizer tudo de uma só vez. Somente de vez em quando é que parava um pouquinho, olhava para a barra no horizonte, entristecia um pouco os olhos e recomeçava a falar e a falar. E dizia:
Debaixo de todos os sóis está o sertão. Não se deve considerar como realidade da terra e do tempo o que é escrito pelos acadêmicos ou ditos intelectuais. Eles podem conhecer fórmulas e teorias mas não sabem nada sobre o que é o viver nesse viver. De lá, de muito longe, inventam palavras bonitas para uma coisa que ninguém conhece mais do que o próprio sertanejo. Quem quiser pode abrir qualquer livro de geografia que lá encontrará: O sertão é uma região agreste, afastada dos centros urbanos e sem condições ecológicas e sócio-econômicas que lhe favoreça o desenvolvimento. Designa, de modo geral, todo o interior brasileiro, principalmente as regiões semidesérticas. Em especial, o termo aplica-se fundamentalmente ao setor semiárido do nordeste.
No livro da vida e da terra o conceito é outro. Sertão é a casa, a moradia do sertanejo, do São Jorge lutador contra os dragões filhos do sol, da seca e da fome. É o leito no qual abundam o suor e a lágrima, num rio imaginário de águas que nunca saciam completamente a sede e nem matam a fome da terra e dos homens.
Ser filho desse sertão verdadeiro é aprender forçadamente a ler o livro da sobrevivência. Cada página uma estação – inverno e verão, verão e inverno, somente -, uma acentuada esperança e fé, o desejo de dias melhores, que sempre tardam a chegar. Neste livro, as personagens são muitas, a maioria sem nome definido, mas todos dentro de um contexto cujo final da saga ainda não foi escrito. São vaqueiros, aboiadores, lavadeiras, lavradores, agricultores, pedintes, prostitutas, pescadores, fazendeiros, meeiros, parteiras, desempregados, aduladores (às vezes rende algum vintém), fofoqueiros, donas-de-casa, professores, alunos, e um infinito de gente de todo tipo. Hoje em dia sem-terra com terra e bandido solto e na bandidagem é o que mais se tem, é o que mais se vê.
Seja de que modo for no sertão, na terra é onde se assenta a esperança de sobrevivência. A terra sozinha, porém, não é capaz de produzir aquilo que o sertanejo necessita. Quando está seca, esturricada, ferida pelo suor cortante, não há cristão que nela possa trabalhar, plantar, produzir e colher. Semente nenhuma vinha sem os agrados da chuva, sem, ao menos, o respingar molhado da madrugada.
É preciso esperar a chuva cair em abundância, encharcar toda a terra, deixar a água escorrer vorazmente para os rios, riachos, lagoas, tanques, barreiros e barragens, e mesmo assim saber que ainda não é hora de plantar, pois isto só deve ser feito quando a terra estiver suficientemente úmida e que continue caindo com regularidade uma chuva mais fina, mais branda, quase sereno.
Contudo, esperar que chova no sertão não é tarefa para pouca fé. Observando o que diz o ditado, quase sempre esperam sentados para não cansar. Por isso mesmo é que não há uma época certa para o plantio, cultivo ou colheita. No entanto, se a experiência matuta do sertanejo fizer a previsão que tal será bom, será de chuva suficiente para plantações, todo um calendário de esperanças deve ser seguido.
Muitos dizem que o tempo de plantar feijão é junho a julho; a maioria afirma que o certo mesmo é plantar no mês de março, no dia de São José. Muitos plantam o milho e o feijão no mesmo período, conjuntamente, casados; já outros insistem que o milho vinga mais e melhor se plantado de outubro a novembro. A mandioca, em qualquer tempo. Abóbora e melancia devem acompanhar sempre o plantio do feijão e do milho. E, numa variante, cultiva-se também o quiabo e o maxixe.
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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