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sábado, 3 de abril de 2010

O DUELO ENTRE A PAIXÃO E A FERA FERINA (Crônica)

O DUELO ENTRE A PAIXÃO E A FERA FERINA

Rangel Alves da Costa*


O duelo entre a paixão e a fera ferina estava marcado para o cair do sol do dia seguinte, no bosque das desventuras, onde as pessoas poderiam acompanhar de perto aquele que prometia ser o confronto do século e somente uma sairia com vida. A única exigência feita pela organização do estranho e brutal evento é que os assistentes fossem acompanhados dos seus pares, dos seus amores. Dizia que era para que sentissem de perto a força desses dois sentimentos desatinados.
Uma besteira, um fato aparentemente sem grande importância, foi o que motivou a necessidade da realização daquela luta com armas iguais. Ocorreu que a paixão, que se arvorava de ter o comando supremo dos corações do lugar, soube que por ali estava fazendo moradia o amor repentino, que é a fera ferina. E não deu outra, procurou a intrometida e disse que fosse procurar freguesia em outra pousada, pois ali não havia um coração sequer que já não estivesse tomado pelos seus arrebatadores sintomas.
Como se sabe, a paixão sempre teve fama de perigosa, extremada, arrebatadora, possessiva e capaz de desandar o mundo daquele que cisma em abrir a porta sem pedir licença e entrar. E por isso mesmo é que a definem como uma consumidora da alma e devoradora das cautelas do espírito, como um sentimento que não tem nenhum sentimento com o sofrimento do outro, como a possessão que faz a pessoa perder a noção de individualidade, de identidade e de raciocínio, como a vontade excessiva e voluptuosa de querer o outro como se o mundo fosse acabar se isto não for conseguido. Por ter o poder de perturbar o juízo, dizem até que a paixão é a própria loucura.
Já a fera ferina, que é o amor repentino, mesmo agindo por outros meios para conseguir seus intentos, possui a mesma periculosidade que a paixão, e dizem ainda que em alguns casos é muito mais fatal, principalmente quando ela é jovem, ainda na fase da adolescência. Neste sentido é que afirmam que a fera ferina é obsessiva compulsiva extremada, por atuar no sentimento da pessoa como se toda a sua vida estivesse na dependência de ser amada da mesma forma que loucamente está amando, criando de tal modo uma sujeição física, moral e espiritual com relação à outra pessoa que qualquer suspeita de não estar sendo atendida nos seus anseios pode ser sinal para ataques de fúria e a predisposição para o cometimento de crimes. É isso mesmo, crimes por amor cego e doentio.
No dia marcado, pessoas chegavam aos turbilhões para assistirem à contenda de vida ou morte que se realizaria dali a instantes. Na bolsa de apostas os números eram quase iguais, sendo que a paixão levava uma pequena vantagem por já ser uma velha conhecida de todos, enquanto a fera ferina era tida como azarona.
Grupos de pessoas se reuniram e formaram torcidas organizadas, com direito a fogos e bandeirinhas. Vestidos de roxo, os partidários da paixão entoavam seu grito de guerra: "A paixão é violenta, a paixão é minha sina, mata a fera ferina e meu peito arrebenta". Do outro lado, vestidos de lilás escuro, os ferinos gritavam: "Cuidado com a fera ferina, que vai matar a paixão e o coração da menina".
Assim que o momento do duelo chegou, já no bosque das desventuras onde estavam, o juiz do evento pediu calma e silêncio aos torcedores para que cada uma das combatentes pudesse se apresentar. Primeiro falou a paixão: "Sou a paixão que todos vocês conhecem e por minha causa já sofreram e sofrem do amor levado às últimas consequências. Vocês querem continuar seus relacionamentos com um amorzinho frio e que não decide nada? Sei que não, por isso torçam pela longa vida da paixão".
A seguir falou a fera ferina: "Vocês são tão cegos que não sabem o que querem? E a paixão outra coisa não faz senão cegar as pessoas, por isso mesmo prefiram o amor repentino, que é muito mais avassalador e faz a pessoa enlouquecer com a consciência que é pela causa justa da entrega absoluta por amar demais, mesmo que não tenha razão para amar tanto".
E então começou um inesperado bate boca entre as duas combatentes, sem que o juiz pudesse dar um basta nas mútuas acusações: "Enquanto o outro sangra por dentro até morrer você fica sorrindo, sua paixão descarada"; "E você, amor repentino sem vergonha, que chega e vai logo se apoderando das forças daquele que ainda nem conhece direito"; "Sem vergonha é você, que estragou a vida de uma mãe de família com suas promessas mentirosas", disse a fera ferina; "Mas olha quem fala, essa santinha de pau oco que fez a mocinha abandonar o estudo e fugir de casa atrás de um conquistador barato e ainda por cima casado", respondeu quase explodindo a paixão.
Enquanto isso as duas torcidas começaram a se enfrentar com agressões físicas e verbais: "Covarde", "mentirosa", "assassina de corações", "mãe da perdição e do pecado", 'traiçoeira", "bandida", era o que se ouvia de parte a parte, enquanto bandeiras voavam por todos os lados.
Foi quando o coitado do juiz, que estava completamente perdido e já não sabia mais o que fazer, apitou bem alto e foi logo dizendo para que todos pudessem ouvir: "Tá bom, tá bom, chega, vocês duas ganharam". A seguir, falando mais baixo e balançando a cabeça num desânimo de dá dó, disse: "Ai meu Deus, como é difícil lidar com sentimentos".



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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