SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 2 de abril de 2010

A TELA EM BRANCO E O PINTOR SOLITÁRIO (Crônica)

A TELA EM BRANCO E O PINTOR SOLITÁRIO

Rangel Alves da Costa*


As paredes deste quarto eram branquinhas, com o tempo estão amarelando e ficando tristes, meu santo protetor caiu e quebrou, o espelho não me deixava mais enxergar nada e joguei fora. Só vou comprar outro espelho e colocá-lo na parede quando eu estiver mais alegre. É bom a gente se vê com o rosto feliz no espelho, dizem que dá sorte ao coração e espanta a solidão. Por enquanto, quando quero me enxergar pergunto a mim mesmo como estou, mas ando muito silencioso nos últimos tempos, mudo. Nem lembro a última vez que falei comigo mesmo. Alguém deve estar de mal com alguém.
As paredes não podem ficar assim, não podem ficar feias simplesmente porque tenho andado triste. Se algum dia alguém vier me visitar ao menos poderá vê-las bonitas, limpinhas, prazerosas, como tudo que ganha um presente fica. No dia que eu for à cidade vou comprar uma tinta bem branquinha e darei esse presente com maior prazer, mas por enquanto penso em pintar um quadro bem bonito e colocar bem ali, no centro, onde o visitante se admire e diga que aqui é um lugar feliz.
Não sei ainda o que vou pintar, qual a expressão que quero dar à tela ainda em branco. Pode ser uma paisagem, até mesmo essas árvores e essa estradinha que vejo adiante da minha janela; pode ser um casario antigo como aqueles que gostava de folhear nos livros de história; pode ser um sol bem ardente com um céu azul claro ao fundo e uma nuvenzinha passeando como quem não quer nada; pode ser uma natureza morta, mas morta mesmo, representando as árvores derrubadas na mata aqui ao lado; pode ser uma pintura abstrata onde qualquer coisa que se jogue na tela vira arte; pode ser uma pintura de solidão daquelas que pintava Monet, como os seus jardins floridos, o lago azul-esverdeado com pequenas flores e folhas boiando por cima, o vento soprando pelos campos e a mocinha passeando com vestido rendado e guarda-sol.
Gostaria de pintar uma coisa bem alegre, colorida, cheia de vida e emoção, assim como veleiros singrando as águas ou um trem soltando fumaça pelos trilhos ladeados por uma bela paisagem. Mas não, isso não tem nada a ver com alegria. Barcos chegando e trem partindo lembram sempre tristeza e solidão. Melhor mesmo é pintar uma lua bem cheia rodeada por estrelas, uma casinha no alto de uma serra e animais passeando por perto, uma moça linda estendendo um lençol no varal, gotinhas de chuva caindo e escorrendo pelo chão encharcado. Não. Nada disso é alegre. Quem já viu uma pintura com a escuridão da noite, uma casinha distante e solitária ou chuva caindo ser alegre? Já sei o que vou pintar.
Vou pintar a mim mesmo. Vou tentar lembrar como sou, como são os meus olhos, o formato do meu rosto, os meus cabelos e o meu sorriso e retratarei tudinho na tela. Ainda devo recordar como sou, ou como era, desde criança solitária e triste, com os olhos sempre parecendo perdidos nas distâncias, com palavras remoendo por dentro e uma boca que nunca permitia aos lábios dizê-las. Teu nome ainda vive preso em minha garganta, mas um dia eu direi muito mais, direi, por exemplo, que a roupa mais bonita que eu vestia nos dias de festa não era para que os outros vissem não, era somente para chamar sua atenção.
Ora, mas prometi pintar uma coisa alegre, festiva e colorida. E tudo que digo e tenho dito vem sempre carregado do peso do passado, na presente recordação que não deixa de ser triste. Mas tem nada não, quero me retratar assim mesmo, inventando traços de felicidade como eu deveria ser. É, eu nasci pra ser feliz, bem sei, se não fosse a descoberta de que a felicidade vem sempre acompanhada de uma tarde, de uma noite, de uma recordação. E aí não há como ser feliz. É bem melhor não ser feliz para que o que venha depois não seja completamente infelicidade.
Vou pintar assim mesmo. Mas onde estão as cores alegres, o azul, o amarelo, o verde, o vermelho? Havia esquecido que só me restam tonalidades sombrias, como o preto, o cinza, o marrom... Mas vou pintar assim mesmo meu auto-retrato e quando alguém chegar aqui direi que a pintura está inacabada. Inconcluída até que as cores alegres cheguem à minha vida, nessa paleta de espaços vazios.



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: