*Rangel Alves da Costa
Muita gente não consegue disfarçar a dor e o
sofrimento. Entrega-se ao padecimento quando está triste, chora rios e mares
quando vem a aflição. Contudo, pessoas existem que não deixam transparecer a
agonia de jeito nenhum. Mesmo que sofram por dentro, externamente se mostram
encorajadas e até festivas. Assim acontece com o povo africano, cujo sofrimento
não consegue inibir seu canto e sua dança. E assim também no sertão, só que o
canto sertanejo é de feição tristonha e coração apertado.
O sertão é verdadeiramente terra de
contrastes, de contradições. E inexplicável, por vezes. Porém tudo
compreensível para que assim aconteça. Diante das condições próprias do lugar,
num misto de desolação e esperança, de secura e florada brotando nas cactáceas,
também o sertanejo se ajusta ao instante, ainda que seja difícil entender
porque o canto na boca quanto o olhar avista ao redor e só encontra tristeza.
Tantas vezes, com a panela vazia, com o pote
já chegando ao barro do fundo, mesmo assim a guerreira sertaneja, de pano
amarrado na cabeça e olhar tristonho, olha para o varal sem roupa e se põe a
cantar:
“Quero uma ciranda sertaneja, quero cirandar
no meu lugar. Já cirandei menina, já rodei debaixo do luar, e não é porque
envelheci que vou deixar de cirandar. Traga uma lua pra mim, traga uma ciranda
pra mim, hoje eu quero cirandar até o dia raiar...”.
Noutras vezes, talvez relembrando as
histórias cangaceiras tão costumeiras por ali, fazendo moradia no sertão como o
calango reinando por cima da terra quente, a velha senhora vai varrendo o chão
de barro da casa de taipa e cantarolando:
“Acorda Maria Bonita, levanta vai fazer o
café, que o dia já vem raiando e a polícia já está de pé. Se eu soubesse que
chorando empato a sua viagem, meus olhos eram dois rios que não lhe davam
passagem. Cabelos pretos anelados, olhos castanhos delicados, quem não ama a
cor morena morre cego e não vê nada. Acorda Maria Bonita...”.
Descalça, caçando araçá amarelinho pelos
arredores, de modo a se dar o prazer de saborear uma doçura naquela vastidão
tão hostil, a menina sertaneja, de vestido de chita e fita no cabelo, se
imagina numa roda de brincadeira entre amigas e cantando:
“Atirei o pau no preá, mas o preá não morreu.
Todo mundo se admirou do buraco que o preá se meteu... Se essa nuvem se essa
nuvem fosse minha, eu mandava, eu mandava ela chover, uma chuva, uma chuva
forte assim, pra salvar o sertão e também a mim... Sou sertanejinha, sou sim
meu bem, sou de palha de milho, sou sim meu bem, tenho cabelo de trança, tenho
sim meu bem, e não sou e não sou mais criança...”.
Mesmo com seca de mais de ano, com tudo
acinzentado, devastado, com mandacarus e xiquexiques encurvados e entristecidos,
gado caindo de fome e tanque sem uma gota d’água, ainda assim os sertanejos se
encontram para aboiar suas desventuras ao pé do balcão. E ecoam um aboio
dolente:
“Ê, ê, ê, gado ô, eiá...Vaqueiro que fui pelo
mundo atrás da bicharada perdida, galopei a vida num segundo sem pensar em
despedida, mas hoje já velho e cansado, sem quem me ouça aboiar, sou cavalo
atrofiado sem poder mais galopar. É com o coração despedaçado que me despeço do
cantar, só pedindo ao meu Senhor para o sertão nunca calar o verso matuto
aboiador. Ê, ê, ê, gado ô, eiá...”.
E pelas estradas espinhentas, sob o sopro
calorento das tardes, as velhas beatas seguem em procissão pedindo a
intercessão divina diante de tanto padecimento. Carregando a imagem de São
José, o protetor dos sertanejos, levantam as vozes melodiosas numa reza
esperançosa:
“São José do sertanejo, São José de todo o
sertão, olho pra cima e não vejo sinal de chuva e trovão. Salvai esse povo
sofrido, fazei chover nesse chão, alegria do povo oprimido e fazendo crescer
plantação. São José irmão do nordestino, tão bom pai do meu Senhor, dai graças
ao nosso destino, livrai-nos da desgraça e da dor”.
E assim vão levando a vida, passando os dias,
entre cantos e lamentos, sempre com os olhos voltados para o horizonte. Mas
quando chove, quando a esperança vem dos céus com a molhação, o que se ouve
então é uma orquestra subindo da terra, despontando dos escondidos, ganhando
voz na mataria, no bicho ainda restante, no barro que se desfaz. Todo o sertão,
numa só cantoria de todas as bocas, visíveis e invisíveis, sente tomado pela
mais bela canção:
“Quanta beleza vem do céu, se vai nossa vida
ao léu. É a nuvem carregada, molhando telhado e estrada, encharcando a terra
seca, vida nova de invernada. Chuva que vem de Deus, para os seus e para os
meus, para encher panela e pote, de tudo a melhor sorte. Então deixa chover,
chuvarar, chuvarecer, então deixa pingar pro sertão todo molhar. Se ontem comi
da pedra, amanhã do que plantar...”.
E assim até que o maestro sol novamente
levante sua batuta e faça calar tão singela cantiga. E depois somente a
cantoria da vida, o canto do dia a dia, diante dos mesmos temores pela seca que
logo virá. Mas é preciso cantar, é preciso rezar, pois alguém poderá ouvir essa
voz.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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