*Rangel Alves da Costa
Não tem jeito, não tem perdão, toda vez é assim: bateu a seca, apertou
a estiagem, quem mais sofre é o animal. E sofre mais porque sofrimento interno,
íntimo, sem poder expressar tanta fome, tanta sede, tanta agonia e aflição.
O homem sofre de gritar, de espernear, de dizer nos olhos e nas
costelas aparecendo, tudo terrível demais, mas de modo diferente do bicho.
Enquanto aquele tem o dom da súplica, do pedir, do implorar, do soluçar, este
sofre quietinho, apenas ruminando sua dor.
O sertanejo, diante da situação de desvalia e abandono, pode expressar
como quiser suas aflições. Pede um carregamento de água, vai implorar um quilo
de qualquer coisa, grita o descaso das autoridades diante da situação de
miséria, lamenta junto com o vizinho de infortúnio a sina dos mil sóis
flamejantes.
Mas os bichos, que na alegria ou na tristeza mudam apenas a entonação e
a altura do murmurejo ou lamento, muitas vezes se sentem diante do dilema de
ter a presença do seu dono ou seu amigo para que compreenda sua necessidade,
sua sede, sua fome. Quando é bicho de mato então o esquecimento faz definhar
mais depressa ainda.
Sertanejo conhece os seus bichos, as suas criações, como a palma da
mão. Sabe quando o pelo vai cair e os motivos de ser assim; conhece quando a
magrez não é por falta de alimento, e por isso a doença que o afeta; reconhece
a saúde e a fragilidade pelo brilho do olho, pela sua profundeza, pela baba que
cai, pelo jeito desalentado perante os outros.
O sertanejo autêntico conhece a voz dos seus animais, escuta e
responde, age perante o pedido ou rogo. Mas quando não há o que fazer diante da
sede da vaquinha, da fome do jumento, da finura raquítica do cachorro, do
definhamento do bode, do aspecto lúgubre visível no cavalinho que era tão bom?
São problemas demais para resolver, rogos demais para ouvir, estômagos
demais a roncar. E de repente, com a própria família vivendo em situação pior
que a dos bichos – ao menos as expressões são muito mais visíveis -, estes são
praticamente deixados à própria sorte, tendo de suportar suas dores sem avistar
o amigo chegando com uma esperança qualquer.
E esperança de bicho é ver o seu dono trazer um cesto de palma, um
fecho de capim, um saco de folhagem, uma porção de milho, farelo, alguma coisa
que diminua a fome. Expectativa de bicho é ver seu amigo trazendo em cima da
carroça um galão de água, cortando a estrada com carro de boi para trazer um
tonel de água salobra ou enlameada.
E quando nada mais disso acontece, as ruminâncias ganham contornos de
lamento, de despedida, de gemido, de testemunho final dito de focinho a
focinho. E pelos sertões ecoam as vozes tristes dos animais, seus bramidos e
berros, seus brados e clamores cheirando a morte.
E o sol vai descendo mais forte e avassalador por cima de cada um,
deixando mais aparente o pelo colado no osso. A malhada festiva de um dia vai
parecendo cada vez mais com um leito de morte. Espera somente que os bichos
fraquejantes vão se debruçando por ali, tombando ou deitando por cima de pedras
e espinhos para nunca mais levantar. Para a morte certa.
Nesses momentos tristes é que os bichos ruminam suas condições,
igualmente aos homens, de seres vitimados pelas secas e estiagens. Não há mais
planta em pé que sirva de alimento, a palma acabou de vez, o capim foi devorado
antes de secar, as folhagens desnudaram e acinzentaram, as cacimbas dos riachos
não minam mais uma gota d’água. Nem lama há mais nos tanques e barragens.
Noutro tempo, em quadrantes de verdes e pingos de chuvas, os bichos
ruminam o alimento para experimentar mais de uma vez o sabor dos alimentos. Às
vezes, bate no estômago e volta para ser mais mastigado. Mas agora as
ruminâncias são outras. Remói-se a fome e com as bocas vazias mastigam as
palavras que não podem dizer.
Bicho não fala, mas os olhares dizem tudo. E gritam.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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