SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 2 de novembro de 2018

O BICHO NA SECA


*Rangel Alves da Costa


Não tem jeito, não tem perdão, toda vez é assim: bateu a seca, apertou a estiagem, quem mais sofre é o animal. E sofre mais porque sofrimento interno, íntimo, sem poder expressar tanta fome, tanta sede, tanta agonia e aflição.
O homem sofre de gritar, de espernear, de dizer nos olhos e nas costelas aparecendo, tudo terrível demais, mas de modo diferente do bicho. Enquanto aquele tem o dom da súplica, do pedir, do implorar, do soluçar, este sofre quietinho, apenas ruminando sua dor.
O sertanejo, diante da situação de desvalia e abandono, pode expressar como quiser suas aflições. Pede um carregamento de água, vai implorar um quilo de qualquer coisa, grita o descaso das autoridades diante da situação de miséria, lamenta junto com o vizinho de infortúnio a sina dos mil sóis flamejantes.
Mas os bichos, que na alegria ou na tristeza mudam apenas a entonação e a altura do murmurejo ou lamento, muitas vezes se sentem diante do dilema de ter a presença do seu dono ou seu amigo para que compreenda sua necessidade, sua sede, sua fome. Quando é bicho de mato então o esquecimento faz definhar mais depressa ainda.
Sertanejo conhece os seus bichos, as suas criações, como a palma da mão. Sabe quando o pelo vai cair e os motivos de ser assim; conhece quando a magrez não é por falta de alimento, e por isso a doença que o afeta; reconhece a saúde e a fragilidade pelo brilho do olho, pela sua profundeza, pela baba que cai, pelo jeito desalentado perante os outros.
O sertanejo autêntico conhece a voz dos seus animais, escuta e responde, age perante o pedido ou rogo. Mas quando não há o que fazer diante da sede da vaquinha, da fome do jumento, da finura raquítica do cachorro, do definhamento do bode, do aspecto lúgubre visível no cavalinho que era tão bom?
São problemas demais para resolver, rogos demais para ouvir, estômagos demais a roncar. E de repente, com a própria família vivendo em situação pior que a dos bichos – ao menos as expressões são muito mais visíveis -, estes são praticamente deixados à própria sorte, tendo de suportar suas dores sem avistar o amigo chegando com uma esperança qualquer.
E esperança de bicho é ver o seu dono trazer um cesto de palma, um fecho de capim, um saco de folhagem, uma porção de milho, farelo, alguma coisa que diminua a fome. Expectativa de bicho é ver seu amigo trazendo em cima da carroça um galão de água, cortando a estrada com carro de boi para trazer um tonel de água salobra ou enlameada.
E quando nada mais disso acontece, as ruminâncias ganham contornos de lamento, de despedida, de gemido, de testemunho final dito de focinho a focinho. E pelos sertões ecoam as vozes tristes dos animais, seus bramidos e berros, seus brados e clamores cheirando a morte.
E o sol vai descendo mais forte e avassalador por cima de cada um, deixando mais aparente o pelo colado no osso. A malhada festiva de um dia vai parecendo cada vez mais com um leito de morte. Espera somente que os bichos fraquejantes vão se debruçando por ali, tombando ou deitando por cima de pedras e espinhos para nunca mais levantar. Para a morte certa.
Nesses momentos tristes é que os bichos ruminam suas condições, igualmente aos homens, de seres vitimados pelas secas e estiagens. Não há mais planta em pé que sirva de alimento, a palma acabou de vez, o capim foi devorado antes de secar, as folhagens desnudaram e acinzentaram, as cacimbas dos riachos não minam mais uma gota d’água. Nem lama há mais nos tanques e barragens.
Noutro tempo, em quadrantes de verdes e pingos de chuvas, os bichos ruminam o alimento para experimentar mais de uma vez o sabor dos alimentos. Às vezes, bate no estômago e volta para ser mais mastigado. Mas agora as ruminâncias são outras. Remói-se a fome e com as bocas vazias mastigam as palavras que não podem dizer.
Bicho não fala, mas os olhares dizem tudo. E gritam.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com        

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