*Rangel Alves da Costa
Dona Senhora abria a porta do fundo da casa e
apertava os olhos em direção às nuvens. Precisava saber se vinha tempo chuvoso
e logo retirar as roupas do varal. Seu Quinzé se apressava pra ajeitar um canto
de cerca aberto pela meninada. Quase toda manhã era assim, pois a gurizada
sempre encontrava um jeito de ir afanar as frutas maduras caídas, ou mesmo
subir nos mamoeiros e goiabeiras. A mocinha Zuzu já não sabia o que fazer com
suas calcinhas lavadas. Acaso estendesse no varal, era absoluta certeza de sumirem
de repente, como se algum ladrão de calcinhas vivesse de olho no seu quintal.
Passou a estender suas roupas íntimas na portada da janela, mas foi pior.
Rosaflor, um desmunhecado do lugar, foi pego com a mão na massa enquanto
tentava furtar uma vermelha com renda. O Velho Sirineu tinha no seu quintal um
verdadeiro amigo. Era nele, sentado num tamborete debaixo da goiabeira, que
acendia seu cigarro de palha e se danava a conversar sozinho com suas
saudades. Um dia, a filha Jurema
perguntou-lhe com quem tanto conversava, e logo veio a resposta: “Com sua
mãe!”. Era viúvo já desde mais de dez anos. Os quintais eram assim, um outro
mundo dentro do mundo-cidade. Hoje não, pois atualmente quase não existem mais
quintais, apenas muros altos e muros mais baixos. Ao invés da natureza ou dos
tufos de mato adiante, os olhos só avistam cimento e pontas de pregos nas suas
alturas. Noutros tempos, contudo, os quintais eram como espaços sagrados,
mágicos, aconchegantes. Abrir a porta do fundo e vivenciar o mundo do quintal
era como se reencontrar abrindo velhos baús. Era como se deparar com as
nostálgicas velharias, com pedaços do passado, com a história familiar ali
presente. Nos quintais a síntese de tudo. A pequena horta (tomate miúdo,
pimenta, coentro), o cantinho de plantas medicinais (boldo, hortelã, mastruço e
muito mais), as árvores frutíferas, o velho banco de assentada nas tardes de
sombreado e nas noites de lua grande, o tanque cimentado de lavar roupas,
jarros e caqueiros com suas flores bebendo água de cuia. Num cantinho, as
pontas de vaca para o menino brincar de fazendeiro. Mas talvez sejam os varais
que melhor traduzam a singeleza daqueles quintais. As roupas lavadas e
estendidas. As mãos catando pregadores ou amarrando anáguas e ceroulas ao varal
com pequenos nós no cordame esticado. Depois de secas, as camisas de manga
comprida estendendo os braços, querendo voar. Passarinhos que se espalham em
cantoria no varal. A mocinha que vai chegando com cesto à cabeça para recolher
a roupa limpa. E mais tarde, noutro varal, o dono da casa que chega com faca
amolada. Escolhe um pedaço de toucinho e corta. Corta também a tripa gorda de
porco. Não demora muito e o fogo de lenha é aceso adiante. Vai ter cuscuz, vai
ter toucinho misturado ao ovo de capoeira, vai ter tripa, vai ter café batido
em pilão, vai ter Sertão!
Escritor
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