Rangel Alves da Costa*
O simples ato de moer café carrega em si
vastidão significativa. Não só a moenda triturando os grãos, mas a lembrança de
tal processo como ofício de mãos rudes ou escravas no esforço repetitivo para o
deleite saboroso de outros. E assim porque o café moído e torrado, após a
cheirosa fervura no fogão de lenha, ia para os bules e xícaras daqueles que
sequer sabiam o significado de um coador.
Mas não só nas casas-grandes o perfume do
café torrado tomava os arredores do fogão e se espalhava pelos ares, adentrando
as dependências e despertando os gostos. O aroma do café de moenda ou triturado
em pilão sempre foi prazer socializado, vez que também nos casebres e casas
empobrecidas seu olor poderoso e encantador teve presença constante. Ao menos
para aquelas famílias que podiam adquirir um punhado de grãos e dispunham de um
velho pilão nos fundos da casa.
Um velho pilão que rememora desde a sublime
sobrevivência às durezas da vida escrava batendo a madeira para esfarelar a dor.
A mão do pilão se deitando sobre o arroz de casca, sobre o grão duro do milho e
do café, como se para separar o joio do trigo. De um lado a poeira levando
restos carcomidos de vida, e de outro a peneira sacudindo o que restou de
esperança. E o homem, desde o ontem de escravização tão indigna aos dias de
hoje, sempre batendo o pilão, esmigalhando o grão para colher a sobrevivência.
O grão de café transformado em pó, e depois
na bebida tão apreciada por todos, possui um si um mistério quase sempre
desconhecido aos que simplesmente seguram na asa da xícara para leva-la à boca.
O segredo se revela não no café como bebida de acompanhamento ou como
estimulante, mas no seu aroma impregnado de história e de sacrifícios. O café
embalado não possui nada disso, mas o café de pilão sim. Este é perfumado pelas
belezas interioranas, pela simplicidade de um povo, e também pelo seu gole como
o único pão da aurora ou do cair da noite.
Mas que cheiro maravilhoso, provocante,
sedutor, é o de café torrado, preparado no fogão de lenha, tomado ainda
quentinho e um tantinho adoçado. Cheiro de quintal, de cozinha, de fogão aceso,
de amanhecer e entardecer, de vida interiorana, num sabor perfumado que
continua se alastrando após a boca da noite. Mas também cheiro de nostalgia, de
saudade dos tempos idos, de recordações estendidas nos alpendres e varandas da
vida. Uma inusitada analogia, mas as relembranças singelas sempre chegam
cheirando a café.
Basta imaginar o bule fervendo e pelas
beiradas da tampa subindo a inebriante névoa morena, e me vejo envolvido
naquele outrora tão diferente de agora. Surgem recordações sertanejas e também
citadinas, ressurgem os idos naquele bucolismo de lua e sol, em meio à
singeleza do humilde conterrâneo, e também as vivências na capital, quando esta
ainda convivia com afetividade humana nas ruas de vizinhanças, nas famílias e
relações amigueiras, e afazeres cotidianos.
Nunca avistei por aqui ninguém batendo café
no pilão nem servindo a xícara irrecusável. Também não recordo ter sentido o
cheiro oloroso se espalhando pelas vizinhanças e tornando mágico o entardecer. Com
as facilidades do café em pacote quase ninguém mais quis ter o trabalho de
bater o pilão. Mas recordo outro café sendo moído, levantado em peneira, despejado
na chaleira e fervido na lenha de um passado de grata memória. A moagem do café
ao pôr do sol, através do rádio. Apenas uma música, mas cujo nome fazia sempre
relembrar alguém moendo café.
Já chegando ao entardecer, creio que a partir
das cinco horas, meus pensamentos viajavam ao ouvir a música instrumental
Moendo Café, de Poly e sua guitarra havaiana. Esta sempre presente no programa
Ao Cair da Tarde, apresentado por Irandi Santos na Rádio Cultura de Sergipe. Um
programa que marcou gerações e que hoje faz imensa falta aos amantes do rádio e
a todos aqueles apreciadores de uma programação radiofônica verdadeiramente
voltada ao deleite espiritual do ouvinte.
Ao Cair da Tarde era o mais perfumado bálsamo
depois do correr do dia. E Irandi Santos, com sua voz inconfundível, de
suavidade poética e alentadora, proporcionava inigualável expressividade àquele
momento de transição crepuscular. Como dizia o locutor, a você querido ouvinte,
que agora está no recanto sacrossanto do seu lar, mais uma linda página do
nosso cancioneiro popular. E belíssimas canções eram ouvidas naqueles belos
idos do rádio sergipano. E às seis horas da noite, nesse relógio melodioso do
tempo, A Crônica da Ave Maria, “uma página da Professora Lindalva Cardoso
Dantas”.
Mas o café de pilão era mesmo servido por
Manoel Silva no seu programa Crepúsculo Sertanejo, na Rádio Jornal. Após o
entardecer o saudoso radialista transformava todo o estado num manto
interiorano e transmudava todos os corações em sentimentos sertanejos. E do
rádio parecia sair o cheiro bom do cuscuz ralado, o som da bicharada se
recolhendo aos currais, o aboio do vaqueiro nas distâncias matutas. E aquele
inconfundível cheiro de café torrado.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Seu texto é um poema!É preciso ter as raízes no sertão para compreender tanta beleza! Lindo!
Abraços
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