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domingo, 1 de julho de 2012

AS CRÔNICAS DO CANGAÇO – 2 (O CORONEL AJOELHADO AOS PÉS DO CAPITÃO DO SERTÃO)


                                             Rangel Alves da Costa*


Coronel Ponciano Licurgo era afamado pela crueldade e valentia que todo mundo vivia alardeando. Sertão acima e agreste abaixo, não dava outra conversa que não do verdadeiro perigo que o bigodudo senhor de terno de linho branco representava. Por consequência, não havia filho de homem e mulher que não se benzesse quando ouvia o nome do poderoso latifundiário.
Senhor das terras sem fim do Mundaréu, além da Terra Dourada e da Mata Grande, propriedades que muitos afirmavam ser ainda maiores e com mais rebanhos do que a primeira, vivia mais preocupado com outras coisas do que mesmo administrar suas riquezas. Mas esperto como era, se lançava um olho numa direção deixava o outro olhando à espreita.
Sua grande preocupação mesmo era fazer valer, com todas as letras e poderes inerentes à designação patriarcal e mandonista, a alcunha de Coronel que havia forjado na sua trajetória. Ser Coronel do sertão significava o poder político e econômico, o mando sobre homem e bicho, o elo entre as forças políticas e a sua representatividade.
Como consequência, mantinha grande influência nos setores políticos mais importantes, era amigo de toda a classe política dirigente e até considerado pelo governo federal. Se de um lado colocava sua força de mando regional a serviço das pretensões governistas, de outro era aquinhoado com muitas benesses e ainda mais poder de mando, chegando mesmo a nomear e destituir certas autoridades na sua esfera de atuação.
Contudo, sua esperteza ia muito além desse pacto com os poderes governamentais tanto na esfera estadual como na federal, pois procurava expandir sua influência até mesmo onde ninguém jamais esperava. Se uma nova liderança começava a surgir, então logo tratava de domá-la e colocá-la sob seu jugo. Quando não conseguia dobrar, se sujeitava a estreitar uma amizade traiçoeira.
E pouca gente sabia, mas o Coronel Ponciano Licurgo mantinha uma estreita relação com o líder máximo dos cangaceiros existentes nas caatingas nordestinas, Virgulino Ferreira da Silva, o temido Lampião. Já havia pensado, de cabeça pra cima e de moleira pra baixo, como fazer para que o rei dos cangaceiros se tornasse um dos seus, mais um braço de poder se estendendo pelas caatingas sangrentas.
Contudo, a aproximação com Lampião, garantindo sua amizade e consideração, era uma mirabolante estratégia para não ser afetado na sua honra, acobertar seu instinto exploratório e injusto, preservar sua força diante das possíveis insurgências dos seus próprios comandados e principalmente garantir aquele status quo sertanejo. Ou seja, com as forças governamentais no encalço dos cangaceiros, e ele fazendo o jogo dos dois lados.
E logicamente pensava que enquanto a volante perseguia os cangaceiros, e estes revidavam atacando aqueles, no calor das refregas era sempre chamado a intervir de uma forma ou de outra. E isto porque se tornou política sua, e mantida às escondidas numa vertente, fornecer mantimentos, armamentos e munições para os dois lados. Tanto para as forças policias como para as cangaceiras.
Desse modo, o mesmo carregamento de armas e munições do depósito na sua propriedade tanto estava a serviço da volante perseguidora como dos bandoleiros que precisavam se defender. Assim, todas as vezes que Lampião precisava fortalecer seu arsenal, ter mantimentos em grande quantidade ou considerável quantia em dinheiro, bastava rabiscar um bilhete e mandar que um coiteiro de confiança entregasse nas mãos do Coronel.
Contudo, um problema repentino surgiu diante do poderoso que o forçava escolher de qual lado continuava. Eis que chegou aos ouvidos do governante estadual, que logo passou a informação para o governo federal, que o Coronel Licurgo Ponciano talvez estivesse armando o bando de Lampião. Um carregamento fora interceptado nas veredas sertanejas, e antes de morrer o coiteiro foi tentado a dizer de onde vinha e pra onde iam aqueles caçuás cheios de armas e balas. O sertanejo morreu sem dizer, mas a volante acabou descobrindo o ponto de partida.
Como ninguém era besta de botar os pés além da cancela do Coronel, coube ao comandante da guarnição da caatinga enviar comunicado diretamente ao secretário de segurança relatando o ocorrido. Imediatamente este comunicou ao seu superior, que logo fez chegar a novidade preocupante às esferas maiores de poder. E o próprio ministro mandou que convocasse, amigavelmente, o Coronel sertanejo até o palácio estadual para que o mesmo certificasse que tudo não passava de um mal-entendido.
Assim que recebeu o comunicado o Coronel soltou fogo pelas ventas e mandou pelo mesmo emissário uma resposta mais que desaforada ao governador, dizendo que caberia a ele provar o alegado e que se fosse preciso chegar até lá, ao sair do palácio traria consigo todos os votos que havia garantido até o momento. E as relações estariam cortadas de vez. E ademais, se assim mesmo ocorresse, passaria a dar apoio abertamente ao Capitão Lampião. Este sim, um homem que não vivia de conversinhas nem disse-me-disse.
No mesmo dia que chegou o dito emissário trazendo carta com pedido de mil desculpas e oferecimento de mais poderes, eis que aparece no casarão do Coronel outro coiteiro a mando de Lampião, e levando uns rabiscos num pedaço de papel. O poderoso recebeu-o imediatamente e depois começou a suar frio. A passagem dos olhos naquelas linhas causara um efeito desesperador.
O bilhete era direto, curto, simples: “Coroné, já sei de tudo, desne aqui debaixo inté lá pru riba. O Sinhô há de escoiê, ou fica cum a macacada de sua laia, ou sarva sua vida jurano fidelidade a ieu. E antes do sol se por duas veiz quero que venha inté aqui quero oiá no seu oio. O portador vai dizê o resto”.
O Coronel jamais pesou em ter de se submeter a uma coisa dessas. Mas vindo de onde vinha, era coisa de vida ou morte, bem sabia. E no entardecer do dia seguinte, todo esbaforido pelo sol escaldante, chegou ao Coito da Umburana. Tremendo feito vara verde, antes mesmo que Lampião viesse recebê-lo já se posicionou de joelhos.
Choraria se preciso fosse, ofereceria o mundo acaso precisasse. Sabia que ali não havia mando nem coronel, poder ou riqueza, mas apenas um pobre coitado, frouxo até dizer chega, pronto a implorar para não morrer. Com as mãos cruzadas no peito, fechou os olhos assim que viu o cangaceiro maior se aproximar. Depois de rodeá-lo por uns dois minutos, o Capitão falou que um Coronel tão poderoso não ficava bem naquela posição, daquele jeito dos acovardados.
E Deus nunca havia estado tão presente no poderoso do que naqueles dolorosos momentos. Ao levantar, sem ainda acreditar que estava vivo, passou mais de uma hora só ouvindo e balançando a cabeça afirmativamente. Dava tudo pra ter força nas mãos para escrever cada exigência saída da boca de Lampião.
Mas não esqueceu não. Quando saiu de lá já sabia muito bem o que fazer dali em diante. Continuaria na mesma mentira para não perder o poder, porém redobraria as remessas de armas, dinheiro e munições, e além disso exigiria a transferência de toda polícia que estivesse no encalço do bando naquele momento. E o comandante da volante nordestina tinha de ser o Capitão João Bezerra, que era amigo de Lampião e em quem ele tanto confiava.
Mas essa amizade entre Lampião e o Capitão João Bezerra, sob cujo comando a volante chacinou o bando cangaceiro, é outra história. Ou histórias.


Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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