*Rangel Alves da Costa
Fiz tal relato preliminar porque se iniciasse o texto dizendo ter
nascido na mais autêntica aridez nordestina, com estiagens que se prolongam por
anos a fio, com vegetação cuja predominância maior é do mandacaru, do
xiquexique e da desnuda catingueira, logo imaginariam que nenhum rio estivesse
tão permanentemente presente naquele lugar.
E o São Francisco, mesmo ameaçado na sua existência pelas ações
degradantes do homem, pelo uso indiscriminado como fonte energética e pelos
canais e irrigações que vão surgindo para minar suas forças, continua fazendo o
seu caminho molhado, fazendo as curvas e recurvas leitosas, levando no seu
leito embarcações de médio e pequeno porte e no seu corpo a sobrevivência daqueles
que se esforçam para pescar o alimento da sobrevivência.
Certamente não é mais o Velho Chico grandioso e caudaloso que os livros
de geografia ensinavam. Longe o tempo onde as estradas sertanejas seguiam as
curvas do rio, onde o comércio e a pujança fortaleciam as ribeiras e faziam
surgir portentosas cidades. Penedo, Propriá, Neópolis, tudo da semente leitosa
que de muito longe chegava trazendo riqueza e bonança.
Também quase não é mais caminho para os ribeirinhos, não é mais
garantia de sobrevivência dos habitantes de suas margens e arredores e nem
mesmo a razão de viver daquelas povoações que desde o amanhecer ao anoitecer
avistavam o rio correndo como se ali estivesse o próprio sangue percorrendo na
veia. As senhoras não sentam mais ao entardecer nas calçadas altas para
avistarem as chegadas e partidas. Pouco surge na curva do rio que mereça ser
avistado com grandioso espanto.
É até triste dizer, mas a verdade que a contínua magrez do rio desde
muito que vem deixando a população ribeirinha em situação de abandono e
desamparo. Se de um lado, e ao longo da história, a gente barranqueira se fez
dependente demais do rio, de outro, a nova situação de escassez do que as águas
ofereciam não veio acompanhada de políticas públicas que permitissem ao homem
sobreviver perante a nova e desafiadora realidade.
Assim, num processo de lenta destruição e de nenhuma renovação, o que
absurdamente se vê é a água ao lado da sede, ou a sede sem que o povo tenha
sido ensinado a beber a água. Neste caso, tem-se que o leito do rio, porém com
menos força e profundidade, com quase nenhum alimento nas suas águas, continua
passando diante dos ribeirinhos, de suas casas, de suas famílias, mas quase sem
nenhuma valia para os objetivos de sobrevivência.
Daí, com o rio continuando a passar, porém sem que o deitar de uma
canoa no seu leito seja garantia de pesca nem de peixe pequeno, outra coisa não
se tem que não a angustiante metáfora da água que não mata a sede. E porque
sede é aqui noutro sentido que não a falta de água, mas indicando a fome e
todas as formas de desamparo do ser humano ribeirinho.
E também a sede da fartura de um dia, da saudade das águas piscosas nos
tempos idos, das embarcações que aportavam fazendo o comércio e interligando a
vida, da rede jogada com a certeza que o alimento do dia chegaria enroscado, do
olhar que se derramava cheio de admiração por cima do leito largo, distante. E
agora ter apenas o rio passando, fazendo sua trajetória como obrigação, como
pessoa que caminha sem contentamento, sem felicidade, num tanto faz de viver.
Por que o Velho Chico nem se compara ao grande pai de um dia, aos seus
órfãos pouco resta a fazer senão lamentar às suas margens. Quando a fome chega,
somente se voltando para a cidade para mendigar o pão. Não se estabeleceu, com
suficiência e provimento de recursos, uma cultura de plantios às suas margens;
não procuraram ensinar ao barranqueiro nada que o libertasse da eterna
dependência de suas águas.
Parodiando o poeta lusitano, o São Francisco continua o mais belo, o
mais vigoroso, o mais pujante e encantador rio que passa por aquela aldeia, por
aquelas margens de um povo sofrido, mas não porque seja o único rio que passa
por aquela aldeia, e sim porque veia, porque raiz ribeirinha, leito onde o
sertanejo lança o olhar, num misto de ternura e tristeza, imaginando que amanhã
será bem melhor.
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