SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 6 de junho de 2014

RADIOLA, CAVALO DE AÇO E BOCA DE SINO


Rangel Alves da Costa*


Como ocorreu e ainda acontece em toda a região nordestina, basta que a seca aperte e o homem vai logo procurando outros meios de sobrevivência.
Muito mais que hoje, tempos atrás a falta de chuvas significava ficar sem nenhuma perspectiva de trabalho ou de ganha-pão. Ora, num sertão aonde praticamente tudo vinha da terra, sem pingo d’água não havia plantação, colheita, roçamento, capinação, nada que fosse garantia de tostão na mão do trabalhador.
E o que fazer em tempos assim tão difíceis? Tornar realidade aquela triste partida cantada por Luiz Gonzaga, só que sem a família e o restinho de tudo, e apenas com a mala, a coragem e os sonhos tantos levados à cidade grande, ao sul do país. Para aquele nordestino humilde, e tantas vezes iletrado, sul do país se resumia a São Paulo e Rio de Janeiro.
Assim, bastava que o trabalho do dia a dia escasseasse ou sumisse de vez e o sertanejo logo começava a fazer planos para viajar. Era uma decisão muito difícil de ser tomada, principalmente quando o rapazinho já estava compromissado com a família da moça e só faltava o tempo melhorar para o casamento.
Hoje é muito difícil de acontecer, principalmente quando se sabe que a traição amorosa ou conjugal é feita mesmo com o marido em casa, mas nos tempos idos o noivo viajava sem medo. E lá do sul, ciente que sua amada mantinha-se casta e virtuosa, todo mês enviava um pedacinho do ganho para comprar uma coisinha ou outra, para comprar tijolo ou levantar uma parede. E no retorno tudo ficava mais fácil.
Tenho minhas dúvidas nas virtudes amorosas de hoje, sobretudo entre os mais jovens. Não há de se espantar se um cabra casado tiver de viajar para ralar feito um desatinado noutras terras distantes e no regresso não consiga sequer passar na porta de casa. As pontas não deixam. Mas noutros tempos havia muito mais confiança e a certeza que a saudade era a única coisa atormentando a forçada separação.
Quando o cabra era solteiro, desimpedido, tendo viajado sem deixar moça de família compromissada, então a situação mudava de figura. O dinheirinho que acaso enviasse era para ajudar na feirinha de casa, na remediação de qualquer coisa mais urgente. E o que fosse juntando por lá era tencionando retornar uma pessoa totalmente diferente daquele tabaréu que nada conhecia da modernagem.
Para a grande maioria dos sertanejos, viver algum tempo no sul significava arvorar-se de seu linguajar, suas gírias, seus modismos, seus modos de vida. Quer dizer, transformar-se num ser totalmente diferente daquele simples caboclo acostumado com o sol e sonhando debaixo da lua grande. E a  verdade é que realmente se transformava. Mas o problema - e este imenso - estava no retorno a terra.
Descia do ônibus de seu Vavá quase irreconhecível pelos familiares e conterrâneos. Falando chiado, num carioquês reforçado, o cabelo era uma verdadeira estripulia. Todo endurecido, estoquiado para cima, mantido assim à força de um pedaço de madeira com longas pontas agulhadas e que se passava por pente. Era o tal do black power. E a vestimenta era quase sempre um show à parte.
Camisa florida, geralmente de manga comprida, calça apertada que ia forçosamente folgando abaixo do meio da perna. Ia se abrindo feito sino, daí o nome calça boca de sino. Quando não folgava pelo próprio tecido, bastava mandar costurar um pano de outra cor, também conhecido como nesga, geralmente florido. E uma pessoa assim se portava como o mais bem vestido do mundo, um verdadeiro galã sertanejo.
Mas na bagagem com modismos tais, não podia faltar a radiola e os vinis com os estrondosos sucessos do sul do país. Alguns chegavam com mala entupida de música de embalo ou discoteca. Mas a maioria preferia o romantismo apaixonado, assim como Evaldo Braga ou José Ribeiro: “Tens a beleza da rosa, uma das flores mais formosas. Tu és a flor do meu lindo jardim...”.
Contudo, não demorava muito e o galã ia amiudando. Sem dinheiro suficiente para manter a pose e a carioquice, o modismo e a ginga, aos poucos ia se desfazendo de tudo, de roupa a radiola. E tinha de novamente acostumar a ser e viver como sertanejo. E reaprender a lidar com o cabo da enxada.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com   

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