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quinta-feira, 5 de junho de 2014

O SER HUMANO, TÃO SAGRADO E TÃO PROFANO


Rangel Alves da Costa*


Nascido sob as bençãos sagradas e inspirado para uma existência baseada na prática das grandes virtudes, aos poucos o homem foi profanando sua condição primordial de bondade e decência. Ao profanar sua essência, violando as regras primeiras e fazendo uso abusivo de práticas indignas ou impuras, o ser humano se permitiu carregar sobre si o fardo da ambiguidade: aquele que espiritual e moralmente quer ser e assim ser visto, e aquele que tudo nega pelas próprias ações.
A ambiguidade parece ser própria do ser humano. Carrega em si tantos sentidos e interpretações que se torna quase que indefinível e sempre impreciso. Uma hora está firme numa posição, na outra já tomou outra direção; prega religiosamente uma coisa e faz tudo diferente por trás dos panos. Enxerga no outro o que não consegue reconhecer em si mesmo, aponta o erro do próximo e dificilmente se admite errado também.
Mas não é tudo, eis que se tornou costumeiro dividir a sua realidade em dois mundos completamente distintos. O que lhe cabe e lhe diz respeito, e onde tudo parece sempre correto e justo, e aquele onde está situado o outro. Este sempre objeto de críticas, de insinuações maldosas, envolto em suspeitas e falsidades. E assim é forjada a convivência, onde ninguém acredita no outro porque a verdade está apenas consigo. 
E não somente perante o outro como diante de toda a realidade da vida. Consequência disso é um mundo egoísta, individualista, ganancioso. Um mundo onde os seres parecem apenas aparentes, disfarçados, pois nunca refletindo suas verdades íntimas, mas tão somente o que lhe interessa como proveito. Quer dizer, o mais importante não é viver e sim agir para levar vantagem em tudo, para fazer valer sempre os interesses pessoais.
Conhecidas são as posições e as contradições políticas existentes no mesmo ser humano, sempre na dependência desta ou daquela situação. Valores, conceitos e princípios são renegados e tornados conservadores demais ou desatualizados perante os modismos e as nuances do tempo presente. Dificilmente se vê a manutenção de princípios pessoais diante das atrações do tempo presente. As tentações são tamanhas que se tornaram raridades coisas como a manutenção da palavra, a lealdade aos compromissos, a preservação do caráter.
Aparentemente, o postulado humano continua inabalável. Cada um procura repassar a imagem de insuspeita, de seriedade a toda prova. E até age assim externamente, e no intuito de transmitir conceitos que não existem internamente. Muito menos na consciência. Esta, em alguns casos, tem de conviver com o dilema de reconhecer o erro e saber que continua errando. Vale sempre aquele velho ditado: faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço. E assim vai o ser humano caminhando na eterna busca de um norteamento na vida. Ou não.
Ou não porque o homem parece ter aprendido a ser o seu próprio disfarce. Dependendo da situação age de uma forma e de modo totalmente no passo seguinte. Faz-se, assim, desacreditado não só nas ações, mas também, e principalmente, na feição de seu caráter. E nem parece preocupado com isso, eis que também aprendeu a viver segundo as forças dos ventos e das propensões cotidianas e não mais em cumprimento e preservação de sua honradez.
Alguns animais se disfarçam instintivamente, mas quase sempre por necessidade de sobrevivência. O camaleão toma a cor do tronco da árvore para fugir do predador; gafanhotos se disfarçam de galhos e folhagens para não servir facilmente de presa; diversas outras espécies são exímias na arte da camuflagem, mas tudo em obediência a princípios naturais. Contudo, mesmo que assim comumente ocorra, não é algo inato ao ser humano a propensão de modelar seu caráter segundo as conveniências.
Talvez sejam as conveniências, os interesses e as vantagens que tornam determinados sujeitos tão volúveis. À moda dos malabaristas, vivem se contorcendo para alcançar o que lhe garanta melhor proveito, ainda que de modo reprovável em todos os sentidos; à moda dos mais argutos interesseiros, se ajoelham piedosamente diante do algoz com moeda na mão; igualmente aos heréticos, preferem desacreditar para pecar sem temor. Tristes os tempos do homem assim.
A verdadeira personalidade humana - ou aquele arcabouço definidor do comportamento humano no seu pensar, sentir e agir - vai sendo moldada progressivamente, mas não de modo a fazer com que um mesmo indivíduo, de modo normal, possa ter diversas personalidades, uma para cada momento. O caráter é, pois, a junção dos valores presentes na personalidade e que permitem reconhecer no homem firmeza de posicionamento. Sem a solidez no caráter, logo é revelada a fragilidade do ser diante das ofertas indecentes encontradas a cada passo.
E de repente, o ser sagrado pelo nascimento, existência e espírito, se torna um vil objeto daquilo que ele próprio diz repudiar. Apenas diz, pois esconde sua essência humana e age com o disfarce adequado a cada situação.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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