*Rangel Alves da
Costa
Pai do meu
pai Alcino, meu avô Ermerindo era a flor e o espinho em pessoa, ao menos alguns
assim achavam. Decerto, de vez em quando se mostrava um tanto fechado, mas era
de coração bondoso e com atitudes surpreendentes. Por trás do bigodudo, de
chapéu e chinela de couro, sempre um homem preocupado com a religiosidade e a
cultura sertaneja.
Devoto do
Padim Ciço Romão, cedo se tornou romeiro e não perdia uma só viagem ao
Juazeiro, fosse de pau de arara, caminhonete, ou carro baixo, como se dizia.
Logicamente que sempre ao lado de sua Emeliana. Então seguia o casal ao lado de
conterrâneos, levando farofa, lombo, carne assada, farinha seca e outras
comidas de estrada, para uma viagem que era longa e cansativa.
O retorno,
por estradas perigosas e sacolejos dos veículos, era outra santa missão. Mas
traziam rapaduras, imagens em todos os tamanhos do Santo do Juazeiro, fitas
abençoadas, garrafas com água benta, além de outras lembranças tão necessárias.
Seu Ermerindo sempre aproveitava a viagem para trazer uma dezena ou mais de
discos, e todos de repentistas. Agora não recordo os nomes das duplas
violeiras, mas lembro muito bem da verdadeira discoteca que o meu avô mantinha
em sua casa. E toda ela de Lp’s de repentistas.
Sua paixão
era tão grande pelo repente - uma cantoria ou desafio em dupla, aonde um mote
vai puxando outro, e assim por diante - que fazia do seu Poço Redondo um lugar
de parada obrigatória para muitas dessas duplas. Acolhia-os na própria
residência, mas os desafios eram marcados para a sua mercearia, ao lado da
atual Câmara de Vereadores, quando uma multidão se apertava para beber, aplaudir
e torcer pela resposta mais criativa de um ou outro repentista.
Ao lado do
bilhar de Angelino, a mercearia de Seu Ermerindo era ponto de passagem
obrigatório no centro da povoação. Balcão grande, comprido, de madeira antiga,
por cima dele passando desde a cachaça ao quilo de tudo. A pinga mais ao fundo,
perto da sinuca, onde também ficavam umas duas ou três mesas, para não tomar
muito espaço para os jogadores. Mesas de beber e de jogar, pois o baralho
também corria solto, porém sem rivalizar com a jogatina do bilhar de Angelino.
Num tempo
sem energia elétrica, como se dizia, a geladeira era a gás e o resfriamento da
cerveja e refrigerantes nem sempre era maior que o do fundo de um pote. Ademais,
a geladeira da mercearia não fechava bem e tinha de ser vedada com um
verdadeiro cinturão de borracha macia de pneu. Mas não faltavam clientes,
principalmente quando os repentistas chegavam ou quando algum forrozeiro puxava
o seu pé-de-bode para animar a sertanejada. Acaso não pagasse na hora não havia
problema, pois o caderninho ia somando tudo. Depois, já se conhecendo o humor
do dono, não havia como se fazer de esquecido.
Meu avô
Ermerindo não tinha leitura nem escrita, nunca aprendeu qualquer coisa que
envolvesse letras, mas diferente acontecia quando se tratava de números.
Analfabeto de um lado, mas verdadeiro doutor no número, na conta, na medição,
no cálculo de cabeça. Nem precisava de papel e lápis para dizer quantos metros,
tarefas ou hectares, havia em determinado lugar. Igualmente um exímio caçador,
apaixonado por cachorros perdigueiros e uma boa espingarda de caça. E de vez em
quando chegavam caravanas da capital para que o caçador sertanejo os ensinasse
os caminhos das nambus, das codornas, das caças grandes.
Não
gostava de sentar, mas ficar sempre de cócoras onde estivesse, ainda quem em
cima de um banco. Fumava cachimbo, com baforadas longas. Foi branqueando os
cabelos lisos, o bigode vasto, ficando mais bonito, mais sereno, mais avô. Seus
caminhos não mais eram para as caçadas, mas para a sua Santa Rita, propriedade
que amava como o seu lar maior.
Apaixonado
pelo seu tio Totonho e seu irmão Dedé, dividiu seu restante de tanto amor entre
os seus filhos, netos e sua Emeliana. Um dia, quando a doença lhe tomou grande
parte das forças, eis que voltou a ser criança. Uma criança linda num pijama
azul, de mãos frágeis, trêmulas, sorriso fácil e olhos lacrimejantes. Uma
criança que chorava. Assim o meu avô Ermerindo.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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