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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 6 de agosto de 2016

SEU ERMERINDO, MEU PATERNO AVÔ


*Rangel Alves da Costa


Pai do meu pai Alcino, meu avô Ermerindo era a flor e o espinho em pessoa, ao menos alguns assim achavam. Decerto, de vez em quando se mostrava um tanto fechado, mas era de coração bondoso e com atitudes surpreendentes. Por trás do bigodudo, de chapéu e chinela de couro, sempre um homem preocupado com a religiosidade e a cultura sertaneja.
Devoto do Padim Ciço Romão, cedo se tornou romeiro e não perdia uma só viagem ao Juazeiro, fosse de pau de arara, caminhonete, ou carro baixo, como se dizia. Logicamente que sempre ao lado de sua Emeliana. Então seguia o casal ao lado de conterrâneos, levando farofa, lombo, carne assada, farinha seca e outras comidas de estrada, para uma viagem que era longa e cansativa.
O retorno, por estradas perigosas e sacolejos dos veículos, era outra santa missão. Mas traziam rapaduras, imagens em todos os tamanhos do Santo do Juazeiro, fitas abençoadas, garrafas com água benta, além de outras lembranças tão necessárias. Seu Ermerindo sempre aproveitava a viagem para trazer uma dezena ou mais de discos, e todos de repentistas. Agora não recordo os nomes das duplas violeiras, mas lembro muito bem da verdadeira discoteca que o meu avô mantinha em sua casa. E toda ela de Lp’s de repentistas.
Sua paixão era tão grande pelo repente - uma cantoria ou desafio em dupla, aonde um mote vai puxando outro, e assim por diante - que fazia do seu Poço Redondo um lugar de parada obrigatória para muitas dessas duplas. Acolhia-os na própria residência, mas os desafios eram marcados para a sua mercearia, ao lado da atual Câmara de Vereadores, quando uma multidão se apertava para beber, aplaudir e torcer pela resposta mais criativa de um ou outro repentista.
Ao lado do bilhar de Angelino, a mercearia de Seu Ermerindo era ponto de passagem obrigatório no centro da povoação. Balcão grande, comprido, de madeira antiga, por cima dele passando desde a cachaça ao quilo de tudo. A pinga mais ao fundo, perto da sinuca, onde também ficavam umas duas ou três mesas, para não tomar muito espaço para os jogadores. Mesas de beber e de jogar, pois o baralho também corria solto, porém sem rivalizar com a jogatina do bilhar de Angelino.
Num tempo sem energia elétrica, como se dizia, a geladeira era a gás e o resfriamento da cerveja e refrigerantes nem sempre era maior que o do fundo de um pote. Ademais, a geladeira da mercearia não fechava bem e tinha de ser vedada com um verdadeiro cinturão de borracha macia de pneu. Mas não faltavam clientes, principalmente quando os repentistas chegavam ou quando algum forrozeiro puxava o seu pé-de-bode para animar a sertanejada. Acaso não pagasse na hora não havia problema, pois o caderninho ia somando tudo. Depois, já se conhecendo o humor do dono, não havia como se fazer de esquecido.
Meu avô Ermerindo não tinha leitura nem escrita, nunca aprendeu qualquer coisa que envolvesse letras, mas diferente acontecia quando se tratava de números. Analfabeto de um lado, mas verdadeiro doutor no número, na conta, na medição, no cálculo de cabeça. Nem precisava de papel e lápis para dizer quantos metros, tarefas ou hectares, havia em determinado lugar. Igualmente um exímio caçador, apaixonado por cachorros perdigueiros e uma boa espingarda de caça. E de vez em quando chegavam caravanas da capital para que o caçador sertanejo os ensinasse os caminhos das nambus, das codornas, das caças grandes.
Não gostava de sentar, mas ficar sempre de cócoras onde estivesse, ainda quem em cima de um banco. Fumava cachimbo, com baforadas longas. Foi branqueando os cabelos lisos, o bigode vasto, ficando mais bonito, mais sereno, mais avô. Seus caminhos não mais eram para as caçadas, mas para a sua Santa Rita, propriedade que amava como o seu lar maior.
Apaixonado pelo seu tio Totonho e seu irmão Dedé, dividiu seu restante de tanto amor entre os seus filhos, netos e sua Emeliana. Um dia, quando a doença lhe tomou grande parte das forças, eis que voltou a ser criança. Uma criança linda num pijama azul, de mãos frágeis, trêmulas, sorriso fácil e olhos lacrimejantes. Uma criança que chorava. Assim o meu avô Ermerindo.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com 

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