*Rangel Alves da
Costa
Povoado
ribeirinho de Bonsucesso, município de Poço Redondo, sertão sergipano. No outro
lado, encravado entre as serras, o pequeno arruado alagoano de Belo Monte, o
mesmo Belmonte para alguns. Entre os dois, limitando estados e terras, as águas
remansosas do São Francisco, o rio da raiz de todo o nascer e viver sertanejo.
De leito vasto e opulento antigamente, agora apenas um caudal que de repente
ganha vida para no instante seguinte melancolicamente emagrecer.
Nas suas
águas, contudo, uma história triste e comovente que se prolonga, ainda com
sombras que despontam, desde os tempos idos, desde a segunda dezena do século
passado. Quando as águas são muitas e o leito se estende alto de margem a margem,
os visitantes sequer imaginam o que jaz sem vida nos escombros aquosos. Mas
quando as vazantes chegam, o rio diminui e seus ossos vão ficando à mostra,
então surgem os esqueletos e os restos de uma embarcação e sua trágica
história: Moxotó! Sim, um pouco mais além do meio do leito, já nas proximidades
das ribeiras do Belo Monte, ainda permanecem os restos naufragados do velho Vapor
Moxotó. E que história mais instigante!
10 de
janeiro de 1917, uma quarta-feira. O percurso da Moxotó, uma embarcação que
fazia parte da Companhia Pernambucana de Navegação, na verdade um vapor também
conhecido como Chata, era cantado e decantado por toda a região. Ora, o
principal meio de transporte. Tinha porto de origem em Penedo, seguia até
Propriá, desembocava em direção a Pão de Açúcar e prosseguia até os costados de
Piranhas, passando pelas povoações ribeirinhas que se estendiam ao longo das
ribeiras do São Francisco.
Naquela
tarde de quarta-feira, já com itinerário de retorno, partiu de Piranhas com
muitos passageiros, produtos para serem comercializados em outras cidades,
fardos e mais fardos de sortimentos, sacos de açúcar, feijão e farinha, além de
muitos outros objetos de valor tão costumeiros naqueles tempos áureos e
faustosos nas ribeiras e pelos arredores sertanejos, mas também por que muito
do que transportava possuía destinação aos grandes centros e até outros países.
Até ouro e prataria levava, segundo relatam.
Ao entardecer, retornando de Piranhas, seu
último porto no trajeto, a Moxotó singrou as águas do Velho Chico para uma
viagem normal, como costumeiramente fazia. Estava lotada de passageiros,
amontoada de bagagens, repleta de um tudo. Com destino à cidade alagoana de Pão
de Açúcar, para na manhã seguinte seguir até Penedo e Propriá, primeiro aportou
na povoação de Curralinho, no atual município de Poço Redondo, no intuito de
receber mais passageiros e descer e fazer subir objetos e mercadorias, o que
igualmente faria mais adiante, quando chegasse às margens de Bonsucesso, tendo
Belo Monte no outro lado.
Como meio
de transporte mais utilizado naqueles idos de 1917, a Moxotó acomodava em seus
balanços e remansos diversas classes sociais sertanejas e nordestinas, levando
e trazendo desde coronéis a pequenos comerciantes e homens da terra. Contudo, o
acúmulo de pessoas acabava causando problemas a uma embarcação reconhecidamente
frágil perante as águas revoltosas e as verdadeiras armadilhas que se
apresentavam a cada avanço do rio. E ante as tempestades, então a situação se
tornava verdadeiramente desesperadora. Foi uma situação assim que começou a
surgir depois das quatro da tarde, enquanto seguia ao largo do Curralinho. O
céu enegreceu, a ventania soprava cada vez mais forte, as águas sacolejavam
ante a repentina tormenta.
O medo
toma conta de tudo e de todos. As vozes são caladas pelos assombrosos sacolejos
que tornavam o frágil vapor como brinquedo de papel dentro de uma banheira
agitada. Pedem para que o comandante imediatamente providencie uma parada numa
margem qualquer. Mas nenhum efeito surtiram os rogos dos aterrorizados
passageiros. A decisão é seguir em frente e baixar as âncoras mais adiante. Já estavam
entre o Bonsucesso e o Belo Monte quando a Moxotó não mais suportou as ferozes
investidas das águas e sucumbiu entre as vagas então profundas. Neste passo,
urge trazer o relato tão dramático quanto emocionante do escritor Etevaldo
Amorim, em texto intitulado “O Destino da Moxotó”:
“Seguem-se
momentos de pavor. Forma-se de repente um cenário dantesco: gritos, choro,
desespero. A água transpõe o convés e invade todo o vão interior. Pânico geral!
Passageiros e tripulantes se atropelam em movimentos desordenados. Uns se
lançam ao rio em busca de salvação; outros são tragados pelas ondas e sucumbem
ao soberbo poder das águas tempestuosas, soçobrando inevitavelmente. Consuma-se
a tragédia. A tempestade afinal se aplaca ao cair da noite. Dia seguinte, a
notícia se espalha. De Pão de Açúcar, onde a tempestade destelhou casas e
derrubou árvores, partiram equipes de busca, coordenadas pelo Capitão Manoel
Rego. Trabalho difícil e doloroso que ia revelando, a cada corpo encontrado, a
extensão e a gravidade do que ocorrera no morro do Belmonte”.
Quase cem
anos depois, eis que de repente uma amiga de Bonsucesso, Quitéria Gomes, me
envia algumas fotografias e nestas, tal qual os restos de uma baleia que de
repente aparecem nas águas rasas, também os restos da Moxotó. As recentes
fotografias demonstram o quanto insepulto continua o velho vapor.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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