*Rangel Alves da
Costa
A feição
da vaquinha era uma tristeza só: no couro e osso, esquelética, fraca demais,
tendente a cair a cada passo. Sem chuva desde muito, sem capim ou planta
rasteira no chão, sem água ou mesmo lama no tanque, sem esperança alguma de
sobrevivência, apenas os dias marcavam sua despedida da vida.
O sol
escaldante descia sobre os seus olhos fundos e os deixava como sem viço algum.
Olhos petrificados, tristes, rodeados de moscas e outros insetos. Da boca descia
uma baba gosmenta que certamente era a junção de todo o fluído restante do
corpo. Já sem força alguma, não podia sequer seguir mais adiante até debaixo de
um velho umbuzeiro. Talvez alguma sombra lhe diminuísse ao sofrimento.
De
repente, das profundezas dos olhos desceram duas lágrimas. As últimas. E tinha
sua razão de ser. Não suportou a dor quando sentiu urubus em rasantes acima de
si. Sabia que aqueles carnicentos esperavam somente sua queda para a impiedosa
comilança dos restos mortos. Os seus restos. Não duvidava mais que iria morrer.
Ouviu um carcará e fechou os olhos. Quis mugir. Não pôde. Já não tinha forças.
Caiu antes
de o sol se pôr. Desolada e triste, temendo ser atacada pelos carnicentos antes
mesmo da morte, quis forçar o passo e chegar até o umbuzeiro. Uns trinta metros
apenas, mas longe demais. Tudo longe demais ante as forças que se esvaíam.
Tropeçou numa pequena pedra e tombou. Caiu e deu um mugido tão alto que ecoou
por todo o sertão.
Ainda
ofegava quando os urubus, os gaviões e os carcarás avançaram pelos ares.
Contudo, repentinamente um canto passarinheiro surgiu tão estridente que fez
recuar todos os carnicentos. Um tem-tem, pássaro que vela a vida e a morte
sertaneja, soltou o seu grito como para anunciar que a vaquinha magra já dava os
seus últimos suspiros.
Preocupado
em anunciar perante todos os bichos aquele instante de tristeza e despedida, o
tem-tem não sabia, mas a vaquinha já havia morrido. Por enquanto afastados os
carnicentos, o pássaro se aproximou um pouco mais e então aumentou o tom do seu
canto fúnebre. Enquanto os sinos das igrejas dobram anunciando as mortes, assim
também com o dobrar aflito daquele pássaro sertanejo.
O tem-tem
procurou o lugar mais alto da catingueira mais alta e ali pousou não só para
continuar anunciando a despedida como para espantar os carnicentos e esperar a
chegada dos bichos. Tinha certeza que logo chegariam vacas, bois, bezerros,
cavalos, jegues, cabras, pássaros, e muitos outros bichos. Contudo, o tempo foi
passando e nenhum sinal daqueles amigos das caatingas.
Quando o
entardecer já tomava uma cor afogueada e o sol abrasava para tostar e ir
embora, então o tem-tem, lá do alto, percebeu que alguns animais se
aproximavam, mas tão lentamente que até parecia que não conseguiriam chegar.
Então o pássaro alçou voo para se certificar sobre o que ocorria com aqueles
bichos e logo se assustou com as terríveis cenas: tal qual a vaquinha antes de
morrer, os bichos igualmente esqueléticos quase não conseguiam caminhar.
E que
indescritível tristeza daí em diante. Não demorou muito e um bezerro caiu,
depois uma vaca, depois um jumento, e depois e depois... Quando as sombras da
noite já avançavam pelos sertões, então dezenas de bichos jaziam mortos ao
redor daquela vaquinha magra, como num velório único nas ressequidas e tristes
paisagens.
Somente o
tem-tem fez sentinela, somente o tem-tem velou seus irmãos vítimas dos
sofrimentos, das estiagens, das secas, das desolações sertanejas. E muitos
velórios e funerais acontecem assim o tempo todo. Pelos pastos sem vida, pelas
terras sem grãos, então a morte chega sem piedade. Por isso tanta dor no homem
sertanejo ao conviver com cemitérios ao redor, com as ossadas de suas crias.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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