*Rangel Alves da Costa
Chora
catingueira, chora... Não há mais sertão de vegetação nativa, de arvoredos
imponentes nem de troncos largos e esguios. Não há mais folhagens zunindo ao
vento do entardecer nem murmurejando dentro das sombras das noites. Já não há
mais a profusão de baraúnas, angicos, craibeiras, cedros, quixabeiras,
juazeiros e barrigudas. O sertão está feio, desolado, devastado, desnudo, numa
desertificação sem fim. Já não há pé de pau para o ninho do passarinho, para o
pouso, repouso e canto, da juriti, do coleirinho, da nambu, da rolinha
fogo-pagô, do bem-te-vi, do beija-flor. Quando o sol desce, ao invés de
arrefecer suas chamas nas copas dos arvoredos, acaba se espalhando pela terra
nua e desta se estendendo em calor pelas paisagens e arredores. Por isso que a
catingueira chora. E chora pela solidão nos dias e nas noites, chora pela
ausência daqueles seus amigos de tronco, folhagem e flores. Chora pela
desilusão desesperançada de já não poder avistar os velhos viajantes em busca
de sombreado nem dos bichos sertanejos procurando guarita ao seu redor. Depois
que o facão foi passado nos troncos e a coivara definhou o que restava da vida,
então restou somente a testemunha da dor e do sofrimento: a catingueira que
agora chora. E com razão, pelo dilaceramento do coração, chora catingueira,
chora...
O choro da
catingueira é o mesmo choro, o mesmo sofrimento do sertanejo. O sertão, que um
dia foi de pujante vegetação, com árvores pequenas e graúdas espalhadas por
todo lugar, aos poucos foi sendo dizimado pela mão humana. Mesmo com a
derrubada de grande parte da mata para a formação de pastagens, a abertura de
estradas e o surgimento das malhadas nas fazendas e sítios, ainda assim restava
uma vegetação que encobria de vida o mundo ora ressecado e ora verdejante do
sertão. Também os bichos possuíam habitat seguro e garantido contra os
forasteiros e invasores. Não precisava ir muito longe, mata adentro, para
avistar a onça, o veado, o porco-espinho, o caititu, o tamanduá, a raposa, o
guaxinim, a cobra grande, a codorna, a galinha do mato, toda uma espécie de
pena e pé. A mata fechada, de difícil acesso e penetração, se mantinha
resguardada dos aventureiros cheios de avidez e cobiça. Apenas uns poucos
desbravadores, verdadeiros colonizadores das vastidões sertanejas, se
instalaram nas regiões mais altas ou pelos arredores das fontes e riachos,
fincando moradia, fazendo curral e abrindo pastagem, ali se fixando num destino
de permanência. Também os rebanhos e os bichos de cria foram sendo assimilados
à dura e difícil realidade sertaneja. Não havia riqueza nem fartura, mas era
uma ambientação onde o homem se sentia contente e realizado pelas próprias
características da região: uma paz cheia de luz e de sol, um encantamento e
magia nos cores do entardecer e nos madrigais passarinheiros do alvorecer.
Por muitos
anos o sertão se manteve alentado na natureza, no homem e no seu animal. Uma
vida cheirando a cuscuz ralado, a queijo de quintal, a café torrado, a arroz
batido em pilão. O homem de tudo, o homem do mato, o homem da roça, o homem caçador,
o homem vaqueiro, o homem aboiador, o homem fé, o homem, religioso, o homem
esperançoso demais. O boi, a vaca, o cavalo, o cachorro perdigueiro, o chapéu
de couro, o roló de cortar estrada, o alforje e o embornal. Assim a vida, ou
aquela vida. As secas constantes, ainda que em muitas delas o homem e o bicho
tivessem chegado ao retrato de couro e osso, jamais fizeram o sertanejo
desacreditar no seu chão. Aqueles que partiam em retirada, pelo mundo sem
destino em riba de paus de arara, voltavam alegres assim que ouviam notícias de
trovoadas e barrufos por cima da terra. E novamente a enxada sulcava o chão
para a semente ser derramada. Jogada para mais tarde se abrir em flor, nas
flores sempre avistadas em qualquer coisa que brote e mais tarde sirva para
alimentar. Assim como a melancia, o milho, a abóbora, o feijão, o maxixe, o
quiabo, a macaxeira, o pé de fartura e de enchimento de barriga.
Mas foi-se
um tempo de ser assim. Os anos não foram amigos nem do sertão nem do sertanejo.
O tempo trouxe no calendário todo um sertão adverso ao homem da terra, ao
verdadeiro sertanejo. Quando, surgidos de todo lugar, forasteiros foram
chegando, levantando bandeiras e empunhando foices afiadas, nada mais se
manteve como antes. Os arames foram cortados, as cercas derrubadas, as
plantações destruídas, vidas e mais vidas aviltadas. E não demorou muito para
que as paisagens sertanejas também se ressentissem dos efeitos das invasões.
Eis que a foice afiada foi derrubando tudo que encontrava pela frente, deitando
sem vida a umburana, o angico, o juazeiro. Na ânsia da fria e covarde
destruição, também a morte da planta rasteira, do cacto matuto, da vegetação
entranhada na mata. E sem mata bicho não vive, o passarinho não voa, nada
resiste. Daí o sertão ser transformado num descampado e depois num deserto.
Somente aqui e acolá que ainda resta uma catingueira. Que solitária e sempre
relembrando o grandioso passado, outra coisa não faz senão chorar. Sim,
catingueira chora. E lacrimeja a seiva ressequida pela selvageria humana.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Não sou nordestino, mas entendo essa dor. Aqui no Sul, a tragicidade não é diferente. Parabéns pelo texto, belo é dilacerante.
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