*Rangel Alves da Costa
Sábado, em Poço Redondo, no sertão sergipano.
Sentado numa das salas do Memorial Alcino Alves Costa, ante uma mesa de verniz
antigo, envolto em objetos e retalhos sertanejos, diante de mim essa máquina de
escrever e mais ao lado uma representação sertaneja que me prende a atenção: um
carro-de-boi.
Sim, sobre a mesa um pequeno carro-de-bois. Todo
em madeira rústica, artesanalmente trabalhado, tudo contém de um carro-de-bois
de verdade: canga, canzil, arreia, cabeçalho, fueiro, mesa, roda de madeira,
etc. Só faltando mesmo o carreiro. Contudo, o mais importante: a exata
representação de um sertão que pouco se avista na própria terra sertaneja. Tal
tipo de transporte sumiu das ruas, das estradas, das veredas matutas, das
malhadas das fazendas e pequenas propriedades.
Aqui escrevendo, olho de lado e sinto a sua
presença, posso até tocá-lo. Num tempo de sertão sem veículos, sem asfalto, sem
motores roncando e sem os atropelos das máquinas, somente as rodas e as patas
da terra para conduzir o progresso. No lombo do burro, do jegue, da mula, os
cestos pendendo nos dois lados, no trote da condução da colheita, do produto
tão necessário à sobrevivência.
Pelos estradões empoeirados, pedregosos e
distantes de tudo, os comboios e comboeiros levando e trazendo o comércio de
então. Mas no contexto de cada localidade, o atrelamento de bois à canga já se
fazia suficiente para o transporte de tudo. Assim iam os carros-de-boi gemendo
pelos sertões, rangendo sua madeira, guiados pelos carreiros. Geralmente de
chibata à mão, ou mesmo com vara de ponta afiada para ferir as ancas dos bichos
e fazê-los apressar, assim garantiam a chegada.
Olho ao lado e avisto o pequeno carro-de-boi,
miniatura de um sertão inteiro. Não há que se falar em sertão sem relembrar o
boi, o curral, o vaqueiro, o cavalo, a catingueira, o mandacaru, a vereda
espinhenta, o casebre, o próprio sertanejo. E também o carro-de-boi como
condutor de vidas e gerações, como o transporte para se vencer os desafios das
cargas mais pesadas, pois levando saco de milho, de feijão, a palma cortada, os
feixes de capim. E muito mais.
No ranger da madeira, no ruído das rodas, no
cicio da terra, no silêncio cansado dos bois e no brado do carreiro, assim a
jornada até a porteira se abrir. A madeira forte, porém já envelhecida e
enfadada da luta, parecia gemer no solavanco da estrada. Quanto mais graxa era
colocada nas engrenagens de madeira, mais o gemido ecoava. Com o peso do
carrego, as rodas abrindo sulcos sobre a terra e fazendo surgir um soluçar
mastigado. O carreiro nunca gostou de som lamentoso e açoitava e ferroava o
bicho para seguir mais depressa. E na sua voz a ordem ouvida e entendida pelos
bois: Vai-te Estrela, vai Ouro Fino!
A depender do peso da carga, com dois ou
quatro bois sustentando a canga, o antigo veículo sertanejo estava por todo
lugar. Quando o carreiro não tinha pressa, se colocava adiante dos bois sem
maiores preocupações. Voltava-se apenas quando o carro começava a gemer
diferente, querendo parar, ou quando chegava ao destino. No demais, nem
precisava ordenar que forçasse a entrada numa ou noutra curva, pois os animais
sempre seguiam o seu passo. Mas noutras vezes, quando a viagem era mais longa,
o carreiro sentava na madeira e dali só descia para abrir uma porteira ou
quando a jornada chegava ao fim e precisava descarregar o seu carro.
Para muitos, um mistério, para outros apenas
lenda, mas a verdade é que o carreiro sempre temia que, repentinamente, os bois
freassem, se negando a seguir. E não adiantava gritar, dar ferroadas, tudo
fazer para que dessem um só passo adiante. Não adiantava. Ou ele mesmo resolvia
o problema ou não tinha outro jeito. E problema difícil de resolver, pois coisa
do outro mundo. Com cavalos acontecia a mesma coisa. Quando o bicho parava,
começava a levantar as patas e revirar com cavaleiro e tudo, o sinal estava
dado: por ali, rente à estrada, havia coisa ruim, e não dessa vida, mas do
outro mundo. Por maior coragem que tivesse, em situações assim o sertanejo
também se arrepiava dos pés à cabeça. Por isso levava sempre no bolso um terço
de contas e uma reza na boca. Então orava e pedia para que todo mal se
afastasse e a força divina permitisse prosseguir seu caminho. Era quando as
porteiras da terra novamente sempre abriam.
Tudo isso me vem à memória ao avistar o
carro-de-boi sobre a mesa, bem ao meu lado. Noutros tempos, aqui mesmo onde
estou agora, não era difícil ouvir o seu rangido na passagem e avistá-lo da
janela. Mas hoje já não passam mais nas ruas asfaltadas e raramente são
encontrados pelas estradas. Como aconteceu com o animal de montaria, que foi
esquecido de vez depois que as motocicletas tomaram o seu lugar, assim também
com o carro-de-boi. Os que ainda restam repousam debaixo dos juazeiros, dos
umbuzeiros ou no meio do tempo. E, abandonados, gemem apenas suas mortes
lentas.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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