*Rangel Alves da Costa
Com algumas modificações, vez que publicado
em jornal impresso, republico o texto abaixo:
Um ano passou e outro já abriu sua porta e
janela para uma nova realidade. Para trás ficaram as festas, as comemorações,
as confraternizações, as trocas de presentes. Muitos foram às compras, muitos adquiriram
muito além de seus poderes aquisitivos, já outros vivenciaram o período como
apenas um desfecho de um ano bom e proveitoso. Certamente que disfarçando muito
as realidades, mas não há que se negar que as ilusões também fazem parte da
utopia existencial humana.
Muita gente, contudo, não viveu qualquer tipo
de ilusão. Sem utopia existencial, o chão é chão, a pedra é pedra, o espinho é
espinho. Não há remendos nem disfarces, não há outra coisa senão o viver
entremeado de angústias, sofrimentos e aflições. A ceia não foi colocada à
mesa, nenhum papel de presente restou pelos cantos, nenhum brinde foi levantado
em copos de plástico ou estanho. Há, pois, uma gente que de humano somente os
sonhos e as esperanças, a fé e a devoção, pois do restante apenas o diferenciamento
perante as posses e as benesses dos demais.
Para muitos, a passagem do ano significa
apenas mais um dia nascido. Como dito, não há ilusões guardadas, não há
expectativas douradas nem planos grandiosos nos passos seguintes. Inicia-se a
luta como todas as lutas de todos os dias. É a sobrevivência que dita a
caminhada. Nada se quer demais, apenas o ter. E nada demais, apenas o pão. E um
pão que na pobreza possui muitos nomes, pois carência de tudo, desde a
dignidade na moradia à dignidade do próprio existir.
Que não se enganem: pessoas existem apenas
pela feição humana, sem muito além disso, pois de sobrevivência tão difícil que
somente adentrando sua porta para sentir a feição aterradora de um nada ter.
Panelas vazias, fogo apagado, pratos guardados, crianças famintas, crianças
doentes, crianças chorosas, famílias inteiras querendo um pão. Sim, de vez em
quando alguém aparece com uma cesta de alimentos, com um pacote disso e
daquilo, mas tudo tão sem nada que em pouco tempo nada mais restará.
E como vivem pessoas assim, famílias inteiras
assim? Como conseguem viver e sobreviver pessoas que amanhecem e anoitecem sem
ter café, almoço ou janta? Fato é que em se tratando de pobreza, as aparências
nem sempre enganam. Não enganam mesmo. Passar diante de um barraco ou de uma
casinha de feição empobrecida é, muitas vezes, apenas uma visão menos dolorosa
do que aquilo que se possa encontrar lá dentro. Entre e vá ver, entre e vá
sentir, entre e vá compartilhar ao menos por um instante dessa dor que nunca tem
cura.
Indaguei: Como vive e sobrevive uma gente
assim, na carência e na desvalia de quase tudo? E logo respondo: Na fé, na
esperança, na perseverança, na expectativa de que o instante seguinte seja
melhor. Igualmente o sertanejo que suporta na esperança de chuva todas as dores
e sofrimentos, do mesmo modo aqueles que vivem nos vazios e desalentos de seus
barracos, na secura da panela e da barriga. Estes, contudo, e não há que disso
duvidar, possuem uma fé infinitamente maior que qualquer outro de mesa e
colher.
Repito, pois, que há uma gente que só
sobrevive como gente pela força de Deus. Há uma gente que só amanhece e anoitece
pela força de Deus. Há uma gente que só fala, sorri e encontra ânimo para lutar
pela força de Deus. Há uma gente que só encontra razão pra viver pela força de
Deus. Há uma gente que só continua existindo pela força de Deus. Há uma gente
que somente suporta as agruras e as angústias do dia a dia pela força de Deus.
Há uma gente que somente se diz gente e vive
como gente pela força de Deus. Pela força de Deus por que sobrevivendo pela
incontida fé em Deus. Uma gente que é pobre, carente, sofrida, desvalida de
tudo, mas de imensa riqueza na fé, na perseverança, na religiosidade, na
comunhão com o sagrado, na esperança por dias melhores.
Não é fácil vive em contínuo desemprego. Não
é fácil viver mendigando pelas ruas. Não é fácil acordar e deitar sem o pão
para saciar a fome. Não é fácil estar doente e não ter remédio, não poder
comprar um comprimido sequer. Não é fácil ouvir o filho chorando querendo
comida. Não é fácil viver ameaçado em barraco de lona. Não é fácil viver nos
escombros e ainda pensar que possui moradia. Não é fácil a roupa em frangalhos,
os pés descalços, a imundície forçada. Não é fácil viver assim. Mas há muita
gente que vive assim. E somente suporta viver assim por força da fé em Deus.
De agora em diante, pelo resto do ano e
sempre, então lembre que há gente assim, uma gente que só sobrevive pela força
de Deus. Vá lá, bata à sua porta, entre. Conheça essa gente e suas carências.
Seja também um Deus em suas vidas. Ajude-a a sobreviver e a também ter
esperança no sagrado humano.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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