SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 4 de janeiro de 2014

O DIA ENSOLARADO DE ONTEM


Rangel Alves da Costa*


Toda recolhida, escondidinha num canto qualquer, a pessoa sentia medo, sentia frio, estava completamente agoniada e cheia de aflição.
Tudo parecia escuro ao redor, num negrume de não se enxergar adiante. Barulhos cortando o ar, sons faiscantes tomando o espaço, estrondos de algo parecendo com folhas de zinco sendo ferozmente amassadas, cortadas, arremessadas. Zumbidos, zunidos, um pavor terrível em tudo que se ouvia.
Era a fúria da natureza. Era também a fúria da natureza humana. Há muito tempo que não chovia, não trovejava, não relampejava, não havia enxurrada levando tudo. Mas não podia ser outra coisa.
Era um terrível temporal, uma voraz tempestade, uma trovoada descomunal, uma medonha tormenta, o maior dos dilúvios, a terra virando mar e a procela em seu impiedoso furor. Era chuva e lágrima; aguaceiro e pranto; borrasca e devastação espiritual.
O sol brilhava lá fora, os caminhos estavam firmes, a vida fazia o seu percurso. Da janela adiante tudo era normalidade, ainda que com as desagradáveis surpresas dessa normalidade. Mas tudo como um dia qualquer esperando que cada um fizesse sua parte na vida.
Mas a pessoa estava ali amedrontada, jogada num canto, temendo tudo ao redor, fugindo da tempestade, correndo do temporal, cavando um buraco profundo para se esconder lá dentro. No quarto escuro, de janela fechada, não era a primeira vez que a fúria da natureza chegava em pleno dia ensolarado.
Tentava não lembrar, fazia tudo para não lembrar. No confronto do presente com o passado, qualquer olhar para o ontem era como navalha fria entrando na pele, esfacelando tudo por dentro. Sabia que havia sido culpa sua transformar a vida em furiosa tormenta.
A verdade é que agora estava ali querendo gritar, querendo fugir, querendo morrer. Inegável é que agora estava ali feito animal acuado, bicho que se envergonha de si mesmo, reles ser que não se merecia. Talvez ainda pudesse caminhar, porém preferia rastejar, rolar pela lama em busca de precipício.
Foi de joelhos até a fresta da janela e a luz da vida doeu no seu olhar. Há muito que não enxergava nitidamente a vida, não sabia o que era ter olhos límpidos para apreciar paisagens, se encantar com a natureza. Não enxergava o horizonte, nada ao redor nem adiante. Apenas o quarto escuro do vício.
Estranho que aconteça assim, mas o viciado em drogas só enxerga a escuridão. A vida não enxergava não, não conseguia apreciar nada que fosse realmente belo, mas apenas o que se escondia por trás das portas de sua mente já totalmente tomada pelo negrume das sarjetas, das marquises, dos esconderijos, dos becos e cantos que davam passagem para um lugar mais escuro ainda.
Os olhos doeram ao avistar o mundo lá fora. Tudo iluminado e cheio de vida, quase como uma visão estranha diante de si. Esforçou-se um pouco mais, até ficou de joelhos para abrir mais a janela e reencontrar aquela luz. Chorava com os olhos ardendo; pensou que não suportaria ter o coração pulsando cada vez mais forte. Teve medo da morte.
Olhou para trás e sentiu em quanta escuridão havia se mantido. Estivera jogada no breu dos esquecidos, dos abandonados à própria sorte, porém chegada ali pelo próprio passo. E logo imaginou que abrindo um pouco mais a janela tudo ficaria diferente, que aquele doloroso negrume logo tomaria outra cor. E num impulso abriu totalmente a janela.
A luz e a ventania entraram tão fortemente que colocou as mãos nos olhos tomados de ardência. E se arremessou pelo chão. De bruços, com as mãos sobre a cabeça, se deixou chorar até que não tivesse mais lágrimas. Choraria infinitamente se preciso fosse. Mas o motivo agora era outro.
Ergueu-se, enfim. E depois de levantada disse a si mesma que o dia ensolarado de ontem - que continuava naqueles que lutavam para afastar de vez a escuridão das drogas -, seria também o seu sol de amanhã, ainda que a chuva caísse para lavar o espírito e purificar a alma.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com    

Um comentário:

PERSEVERÂNÇA disse...

Feliz sábado!!! excelente texto.
Fraterno abraço
Nicinha