Rangel Alves da
Costa*
Não
precisa ser letrado, escritor ou alfarrabista para escrever a vida no livro do
tempo. Gente que nunca foi à escola, que até hoje não sabe ler nem escrever,
também pode registrar sua história nas páginas da vida. E que bela escrita que
é. E tantas vezes muito mais significativa que aquelas envolvendo percursos até
o alcance do poder e da riqueza.
Também não
precisa de lápis de ponta nem caneta tinteiro, de folha de caderno ou de agenda
bonita. Primeiro lê o que a memória dos antepassados lhe permite aprender;
depois transforma o conhecimento em sabedoria; e então vai repassando todas as
lições através da palavra. E o tempo cuida de escrever as lições e repassá-las
de geração a geração. Assim o livro maior é escrito.
É assim
que se vai escrevendo a vida no livro do tempo. Tudo ao modo da sabedoria e da
possibilidade de cada um. O poeta tece o verso com rima, métrica e ritmo, mas o
analfabeto também verseja sua poesia matuta. O escritor narra a trama, delimita
o enredo, dá sentido e coesão à narrativa, mas o iletrado das distâncias do fim
do mundo também escreve o seu épico, sua saga, sua sina.
Em muitos
lugares ainda se desconhece a pena importada, as páginas em branco, os
dicionários e enciclopédias, as máquinas de escrever e os computadores. Mas não
importa se os conheça ou não, pois de nenhuma valia é o metodismo da criação se
não há tempo nem para estudar cartilha e tabuada. A criação ali é outra, e
muito diferente das facilidades encontradas em cima de um birô ou escrivaninha.
Nem
pergunte ao homem do mato, ao homem matuto, ou a todo aquele que vive muito
além da cidade, o que seja ficção, romance, crônica, prosa poética, ensaio,
reportagem, poesia, narrativa literária ou qualquer outra coisa parecida. Faça
isso não. Como o citadino também não conhece a reza do povo nem a erva
medicinal de canto de quintal, e muito menos sabe avistar no tempo se vem
chuvarada, então desnecessário confrontá-lo com academicismos.
Ora, o
mundo é de disparidades, contradições, confrontos. Ninguém deve se prevalecer
na sabedoria ou na verve da escrita perante quem quer que seja. Os saberes são
tão diferentes quanto às pessoas, e bem assim os ofícios e as escritas. O
doutor do anel, por exemplo, não possui formação maior que o velho e
empobrecido sertanejo no seu conhecimento sobre sobrevivência.
A caneta
pode ter mais valor, mas não é mais importante que a enxada, o enxadeco, a
foice. A gravata pode ser de seda pura, importada e de altíssimo valor, mas não
tem mais valia que o gibão, o embornal, o alforje de caçador. O livro que
ensina tudo fazer pode possuir inestimável valor, contudo jamais diferenciado
do velho caderno de orações colocado ao lado do oratório.
Verdade é
que os mestres da vida, os doutores de si mesmos e do seu meio, os sábios das
lições mais antigas, estão espalhados por lugares distantes e embrenhados nas
casas toscas, casebres de barro batido, no meio do mato. Ali a ciência é a da
natureza, a biblioteca é a mataria com seus arvoredos e bichos, a escola é o
padecimento que se alastra de canto a outro. Uma pobreza desmedida, porém com
riqueza humana infinda.
Enquanto
os letrados buscam inspiração, se martirizam buscando uma trama ou um verso, o
analfabeto já amanhece sabendo certinho o que vai escrever naquele dia.
Enquanto o escritor floreia um personagem, muda totalmente o enredo, o homem do
campo já conhece o começo e o fim de sua história.
Enquanto o
dedo de unha sedosa vai apertando teclas para a imortalidade das letras; aquele
outro, de mão calejada e tez marcada da luta, vai ao roçado ressequido levando
o seu lápis. Com a enxada vai escrever na folha da terra. E ali, remexendo no
solo, retirando erva daninha, forrando o leito para algum dia deitar a semente,
vai escrevendo o livro de sua vida, sua história, sua saga de homem doutor
naquilo que sabe fazer.
O livro do
homem humilde, do sertanejo trabalhador, é o próprio livro do tempo. História
escrita desde o nascimento, em cada página vai acrescentando conhecimento sem
precisar de lápis ou caneta. Há um capítulo de pobreza e sofrimento; há outro
de fé e esperança; e ainda muitos outros que falam em desumanas estiagens, em
abandonos pelos poderes, em desvalias em cada passo da caminhada.
A última
página fica sempre em branco. A morte não sabe escrever; a dor e a saudade
também não. Mas antes disso, como anotação invisível em cada página, há também
uma história de honra e dignidade, de decência humana, de uma valorização
pessoal tão grandiosa que nem o preconceito do doutor de anel deixa de
reconhecer.
Contudo, o
mais importante não é que o citadino, o escritor, o doutor, saiba que muito
distante também há um povo que escreve sua história no livro do tempo. Será
necessário que conheça esse livro, que o folheie página e página, e lendo compreenda
o significado do homem perante sua luta para sobreviver.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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