*Rangel Alves da Costa
Era uma vez dois velhos. E dois velhos da
mesma idade, octogenários, igualmente carregados de tempo, de marcas na face,
de livros escritos em tantas histórias. Dois velhos viventes num mesmo mundo,
pois na capital e tão perto de tudo. Pelos desatinos da vida, os dois também
viúvos, carregados de filhos, netos e até bisnetos. Quase tudo igual entre os
dois. Quase por que uma diferença fundamental entre eles: os modos de viver a
velhice.
Verdade que a velhice é da normalidade da
vida e que, cada vez mais, pessoas avançam na idade. Nossos idosos estão por
todo lugar. São avistados passeando na praia, no shopping, nos calçadões,
sentados em praças, caminhando pelos arredores, fazendo compras, descansando em
cadeiras pelas calçadas, jogando dama e dominó debaixo dos pés de paus,
dialogando com jovens ou pessoas da mesma idade. São avistados assim, porém nem
todos. E eis outra diferença fundamental: a velhice da convivência e a velhice
da solidão.
Os idosos geralmente possuem familiares de
sua descendência. Quase sempre vivem ao redor da família. Os netos até parecem
gostar mais dos avôs que os próprios filhos. É do comum da linhagem familiar
que haja preocupação de uns para com os outros. De certa forma, mesmo não
dividindo a mesma casa ou mesmo que ao menos um quarto esteja permanentemente
reservado para a paternidade maior da família, a proximidade é o que sempre se
imagina haver. Ademais, até mesmo pela idade e pelas carências, o idoso sempre
necessita de olhares especiais dos seus, também uma forma de reconhecimento e
respeito. Mas então surge mais uma diferença fundamental: a velhice reconhecida
e acolhida e a velhice simplesmente abandonada.
A velhice, como dito, sempre necessita de
cuidados especiais. A idade avançada vai trazendo problemas de toda ordem. Seu corpo
já está fragilizado, seu organismo já não possui as defesas necessárias contra
as enfermidades mais costumeiras. Um simples desconforto ou uma mera queda pode
provocar um grave problema na estrutura óssea. Ademais, mesmo a junção de tempo
e de experiências de vida, é na velhice que os sentimentos afloram com mais
pujança, que as nostalgias podem transformar recordações em angústias,
sofrimentos e depressões. Como bem diz o ditado, nesta fase da vida se
reencontra, forçadamente, o estágio da criancice, o retorno ao mundo infantil,
como a dizer que o velho passa a requerer os mesmos cuidados de uma criança.
Não sempre assim, mas quase sempre. Neste passo mais uma contradição
fundamental: a velhice cuidada e a velhice relegada aos cuidados de si mesma.
Mesmo os mais jovens e ainda mais na velhice,
o controle se torna em elemento essencial na manutenção da existência. Muitas
vezes, o velho é teimoso, é ranzinza, não aceita nenhum controle, vive dizendo
que sabe muito bem o que fazer. Outras vezes, por achar que já viveu demais e
nessa altura da existência já se tornou um fardo difícil aos seus, simplesmente
vai abdicando de todo cuidado que deveria ter consigo mesmo. Não faz
exercícios, não faz caminhada, não toma o remédio na hora certa, não repousa de
forma conveniente, não procura se alimentar conforme o prato mais condizente à
sua idade. E nem sempre há algum parente por perto para levar a medicação na
hora certa, para lembrar sobre as prescrições médicas, para não deixar que ele
coloque na boca tudo o que tiver vontade. Então surge mais uma questão
fundamental: a velhice que vive aos olhos da família e a velhice que vive na
cegueira do tanto faz.
Todas as questões levantadas acima, todas
elas se voltando para uma possível explicação posterior acerca de duas formas
de velhice: a velhice amparada e a velhice esquecida. Do mesmo modo, o idoso
que vive aos cuidados dos seus e o idoso que sequer tem família que lhe lance
um olhar. O texto foi intitulado de “Dois velhos” neste sentido, como forma de
analisar as contradições havidas nesta fase tão bela e tão problemática da
vida, que é a velhice. Dois velhos por que se pressupõe um velho que vive sua
idade sem problemas financeiros, sem falta de cuidados médicos e medicação, sem
problemas de alimentação, e, o que é mais importante, com o todo o cuidado,
valorização e respeito de sua família. E outro velho. Este vivendo sem nada ou
com parca aposentadoria, convivendo com a solidão da viuvez e no distanciamento
dos seus. Quer dizer, filhos e netos sempre ausentes e que sequer procuram
saber se ainda vive ou se já morreu.
Pode mesmo parecer espantoso, mas muito mais
comum do que se imagina. Por perto e distante existe uma velhice completamente
abandonada, esquecida, quase de inexistência social. Enquanto uns são levados
por suas famílias para passeios, praias, shoppings, cinemas e tudo o mais,
outros vivem na escuridão do esquecimento, da pobreza, da carência de tudo,
principalmente de carinho e afeto. Quem dera fosse apenas uma digressão
descritiva, mas muito mais realista do que imagina nossa vã filosofia sobre a
velhice. Saibam, pois, que há uma velhice que vive sob os túmulos da viva vida.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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