Rangel Alves da
Costa*
Mesmo
cansado da luta do dia, ainda assim bate o pilão, sacode a peneira, despeja o
pó numa cuia. Depois aproveita ainda da clareza do dia, se embrenha na mata,
cata garrancho, resto de madeira carcomida, junta tudo em feixe, deita nas
costas e retorna ao quintal, onde arria tudo ao lado do velho fogão. Depois de
guarnecidas suas entranhas, pinga querosene por riba e acende o fósforo. Joga
por cima e espera a madeira crepitar. Não demora muito e já se aproxima de
abano à mão. Então a labareda vai cantando a primeira canção do já escurecido
entardecer.
Sabe que é
preciso ter a labareda morta e a brasa viva para assar um pedaço de preá, um
naco de toucinho, uma tira de carne ou qualquer coisa mais gorda que reste
salgada e estendida num canto do varal. Por cima do braseiro estende a grelha e
o que for assar. Vira e revira para não tornar o alimento em carvão e assim
perder a mistura do café da noite, parte inseparável da farinha seca. Acaso
tenha farinha de fubá e ovos de capoeira, então a situação é diferente, também
com relação à feitura do café. Primeiro apronta o cuscuz e o café e somente
depois aproveita as brasas para o restante. Cuscuz de pacote, por não haver
espiga de milho para ralar. Mas o café, mesmo de segunda, ainda é batido em
pilão. Não são mais os grãos de antigamente, mas ainda assim o costume chama à
batida de todo dia.
Bater
pilão, aliás, é costume de raiz familiar, passado de geração a geração, desde
as antigas mãos escravas às não menos escravizadas mãos que continuam lançando
o grão ao fundo da madeira para depois o bater e bater. Noutros tempos não só o
café em grão era batido em pilão como o milho e o arroz com casca. Mas também
folhas medicinais secas para os chás e as pomadas caseiras. O milho para fazer
xerém e servir de alimento aos bichos de criação, mas o café para o
deliciamento de todo dia, prazer único do empobrecido após o cansaço do dia.
Depois de batido, passado em peneira e levado à chaleira, o que se tem daí em
diante é um perfume sem igual. Da boca da noite em diante ou ao alvorecer, se
faz tão forte o aroma do café fervente que se imagina um encantamento pelos espaços.
As
gerações deixaram ensinamentos, o passado deixou sua escrita, mas nunca se
prossegue na leitura da mesma linha. Tudo vai irremediavelmente mudando. Até
mesmo a manutenção dos costumes vai se tornando difícil, não só pelo novo que
vai surgindo como pela dificuldade em obter aquilo que os pais e os avós tanto
prezavam no prato do dia a dia. Ora, naquele tempo havia jabá e bacalhau em
cima de cada balcão de mercearia ou bodega interiorana. E tudo acessível ao
pobre. Era só chegar, experimentar um naco e mandar cortar um ou dois quilos.
Não se comia muito, com a fartura desejada, mas muito diferente do que se
passou a ter com o passar dos anos. A barriga teve de passar a se contentar com
a fome, e esta com o que houvesse para comer. E assim continua.
Havia
galinha gorda no quintal, havia galinha ciscando por todo lugar. As manhãs
chegavam ofertando ovos de capoeira, fruta madura, grãos vingados nos serenos
da noite. Havia a melancia, a abóbora, o melão coalhada, o maxixe, o feijão de
corda, o quiabo, a batata, a mandioca, e tudo no pequeno roçado pelos fundos da
casa. Mas num tempo de quintais e de pequena produção para a sobrevivência.
Poucos são os quintais que ainda restam com algum pé de pau ou um pé de
cidreira. Os poleiros sumiram, as galinhas também. As pequenas roças foram
engolidas pelo progresso e ao homem só restou a pobreza crescente. E também a
luta cada vez maior para sobreviver sem mais encontrar o trabalho na terra, na
vaqueirama, na tiração do leite e na feitura do queijo.
É boca da
noite e porteira aberta para o descanso do dia. E um dia nascido ainda na
madrugada escura, antes mesmo de o galo cantar. E assim todo dia. Não ter tempo
de sonhar ou fantasiar um mundo melhor, e já o relógio interior despertando
para tudo se iniciar novamente. Na semiescuridão do madrugar fechado, sem
amarelado nas frestas ou qualquer sinal da alvorada, logo levanta da cama de
ripa e coloca os pés sob o chão batido. Ou o roló de couro cru ou descalço, não
gosta de chinelo rasteiro. E tateando vai rumo à cozinha ou à porta da frente.
Tanto no quintal como defronte a malhada, a primeira coisa que faz é alongar a
vista em direção às cores do horizonte. Ali os sinais esperançosos ou as
aflições.
Que chova
ou faça sol é sempre assim, desde a hora de levantar ao sono chegar. A
diferença mesmo somente nos afazeres perante cada situação. Acaso tenha
chovido, a terra molhada torna a vida diferente, muito mais prazerosa e sempre
com a certeza de um ganha-pão. Mas se for a estiagem que se faça adiante e por
todo lugar, então a sobrevivência se torna em sofrimento. O fogo de lenha nem
sempre é aceso, o bater pilão quase que silencia, até o toucinho some do varal.
Mas a fé vai nutrindo o homem, e este alimentando de esperanças o seu mundo.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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