Rangel Alves da
Costa*
Quando
Macondo foi engolida pela selva verde, que depois vomitou um monstro de cimento
e ferro, ainda assim Veremunda encontrou um cantinho para retornar. Talvez uma
volta ao lar distante, aquele das ilusões encantadas, pois até juravam ser ela
da mesma linhagem dos Buendía.
Mas ela
sempre negava. Aliás, Veremunda sempre negava tudo. De tanto negar, de tanto
apagar os passos e renegar os caminhos, parecia mais um ser sem passado, sem
história, sem recordações. Mas quem realmente seria essa mulher sem idade
certa, maltratada pelo tempo, mas com feições ainda relembrando uma bela
mulher?
Apenas uma
velha rampeira, sempre foi assim. Desde mocinha novinha que já se dizia uma
velha rampeira, e assim pela fecunda função exercida: abrir as pernas para
macho, para qualquer um que pagasse tostão pelo falso desejo. Certa feita,
depois de mais gole de rum, disse a uma de igual destino que toda vez que abria
a porta do quarto era como se avistasse uma fila de homens dando voltas ao
mundo. E todos esperando sua vez de trepar.
Ela,
quando jovem e mesmo de mais idade, cabia muito bem nas descrições feitas por
Jorge Amado acerca das prostitutas de casebres de beira de estrada e daquelas
cheirando a lavanda pelos Bataclãs da vida. Um dia, de pele dourada, lábio
sedoso, quase menina de brincar de boneca, foi jogada ao capim e possuída pelo
Coronel Querêncio. E depois o capataz, o jagunço e qualquer um que desejasse
carne nova. Assim se fez quenga.
Fugiu da
fazenda do coronel e foi bater às portas da cidade. E logo sentiu que cidade é
lugar que não respeita ninguém, principalmente mocinha que chega carregando
mala com quase nada por dentro. Quando três portas se abriram e se fecharam
negando emprego de cozinheira, então resolveu bater em outra porta. Faminta,
desesperançada, foi andando e andando até avistar o que lhe pareceu um bordel.
E era mesmo.
Bonita
como era, começou a fazer a festa de muita gente, de muito coronel, de muito
político e gente poderosa. Mas também de outros que nada lhe prometiam. Jamais
se esqueceu de quando o jovem escrivão, tomado de paixão, enviou-lhe uma
carroça repleta de flores e uma caixa de alfazema. Já estava acostumada com
perfume francês, mas assim mesmo aceitou. Mas errou ao não corresponder aos
rogos do jovem rapaz. Negando-o, negou-lhe a vida, pois o mesmo se matou ali
mesmo no cabaré, e bem aos seus pés, depois de implorar ajoelhado um instante
de sexo e prazer.
Quanto
sentimento de culpa depois disso. Saiu pelo mundo em busca de esquecer aquele sangue
espargindo sobre sua pele, sobre sua roupa. E desde então possuída por
fantasmas e monstros, abrir as pernas pra macho era um tanto faz, um exercício
extremo de indiferença. E de cabaré em cabaré, de cidade em cidade, a jovem
prostituta foi se transformando naquela feição de triste percurso: puta, quenga,
rampeira. Ou apenas uma velha errante na ilusão da existência.
Hoje
acende o cigarro e baixa a cabeça, tristonha, pensativa. Tanto faz uma dose
como um copo cheio. A aguardente barata já não lhe faz efeito. Traz dentro de
si um álcool mais forte e mais inebriante: o passado. Por isso não fala sobre
ele, se nega a relembrar qualquer coisa de sua estrada. Também quase não há com
quem falar sobre qualquer coisa. Quase no meio do mato, num casebre de pouca
visita, diz que ali haverá de ser escrito na cruz rústica como epitáfio:
Veremunda, que um dia foi amada e nunca amou.
E tem um
estranho hábito. De vez em quando, naqueles instantes do entardecer de olhos
molhados, aparece com um trapo de pano e começa a beijar. E nas suas narinas o
sangue ainda respingado, morto, envelhecido, mas tão vivo e pulsante como
aquele um dia jorrado no caberá, a seus pés. De um amor que nunca quis amar. Mas
de um amor que agora tanto queria ter.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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